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Ignorância dos PJs: uma coisa BOA

Na matéria sobre natureza e raças no RPG houve um comentário acerca de um ponto pertinente: os personagens no mundo de jogo sabem ou não das razões científicas por trás deste ou daquele fenômeno? Se eu postulo elfos cuja audição capta freqüências além da audição humana, isto é apenas a causa — na grande maioria dos cenários de fantasia estes elfos não vão anunciar que “esses humanos têm um espectro limitado de freqüências auditivas” — vão dizer que “esses humanos são meio surdos”, isto se eles sequer dedicarem tempo para pensar nisto. Na Idade Média, o processo de decomposição tinha diversas implicações sobrenaturais no entendimento das pessoas da época — mas isto não significa que a decomposição, seu processo em si, ocorresse de forma diferente do que ocorre hoje. Razões científicas, na fantasia, são uma estrutura para dar coesão e verossimilhança aos elementos — e geralmente vão permanecer escondidas (quão arcano!) para não “estragar o clima”. Mas não pense que é apenas a “árida e sem graça” ciência que pode estragar as coisas quando exposta: elementos sobrenaturais, quando não recebem os mesmos cuidados, têm efeitos igualmente prejudiciais.

Uma ocorrência disto, penso eu ser a mais óbvia, são os deuses. Todo cenário os tem, em número variável, nada de pouco usual aqui. O problema está na abordagem de quanto os personagens sabem sobre eles. Um elemento interessante nas religiões é o conceito de fé, de acreditar em algo mesmo tendo evidências inconclusivas ou até mesmo nulas. A maioria dos suplementos sobre o assunto, contudo, mandam a fé para o espaço por uma simples razão — a abordagem que eu chamo de “vista de cima” ou “externa”.
As divindades são apresentadas como certas, confirmadíssimas, indubitáveis. “Fulano, deus de não-sei-o-que, criou tal e tal coisa, fez isso e aquilo”. Eles vêm até com endereço — faça uma viagem planar para o “Plano do Chuchu na Cerca” e você, se for suficientemente pontual, pode tomar o chá das cinco com ele. Não há dúvida alguma, não há mistério. Um efeito colateral disto é bem conhecido: religiões pobres. Sabe-se até o corte de cabelo preferido do tal deus em suas férias de verão, mas, quando “descemos” na hierarquia até os cultos em si, silêncio, vento, bolas de feno rolando e nenhuma informação. Como são as cerimônias? E a estrutura eclesiástica? Que tipos de oração, se isto sequer faz parte do credo, dizem os fiéis? Existe casamento? Se existe, ele segue necessariamente nosso padrão-cristão-monogâmico-mocinho-com-mocinha? Ou os dogmas da tal religião não vêem qualquer objeção entre a união de duas (ou mais) pessoas, independente do sexo? Castidade é virtude? Ou isso não é relevante? Eu poderia ir até amanhã, mas prossigamos.
A abordagem oposta eu chamo de “vista de baixo” ou “interna”. Nela, foca-se nas questões do parágrafo anterior enquanto a divindade em si fica nebulosa. E nada mais natural — os personagens do mundo (jogadores inclusive) hão, em suas vidas, ter muito mais contato com as religiões do que com os próprios deuses. Viagens planares, em cenários em que existem, costumam ser magias de nível altíssimo — e, se você não quiser extrapolar os impactos sociais de uma magia difundida, limitada a pouquíssimos usuários; magias de comunicação divina, por outro lado, estão longe de ser confiáveis — o que impede de haver no “outro lado da linha” um extraplanar ou espírito oportunista fazendo as vezes da divindade com quem se quer comunicar? Se os deuses são incertos, os dogmas são também incertos, passíveis de deformação provindas de debates teológicos e similares. Isso dá espaço para religiões dissidentes e razões consistentes para conflitos religiosos — afinal, fica bem mais fácil achar que seu deus é o verdadeiro quando não se tem evidência irrefutável sobre nenhum dos outros (ou mesmo do seu, mas sua fé há de dissipar tais dúvidas).
Não é apenas a informação científica, portanto, que pode “estragar a festa” — “Ah, quer dizer então que a magia não passa de uma perturbação eletromagnética em um nível sub-atômico da matéria? Que sem graça…” Um elemento sobrenatural que não seja devidamente camuflado pode causar a mesmíssima reação — “Parem já essa guerra santa, visitei ambos os deuses de vocês (o endereço é esse, se quiserem confirmar, já incluí um pergaminho e viagem planar com um mapa dimensional para que não se percam), eles me explicaram os equívocos em seus pontos de discordância e, adivinhem só, não precisam mais brigar em cima dessas picuinhas!” Se se quiser mistério, informação demais pode fazer o tiro sair pela culatra, não importa sua natureza.
Já a informação científica, por outro lado, pode existir, desde que suficientemente camuflada. Se você tem a inclinação e a paciência, nada te impede de montar as raças usando imperativos da Evolução — para adicionar verossimilhança — e apenas dizer que “o deus tal as criou”, se seu cenário tem tal viés criacionista. Só cuidado em como expor isso — se um texto descritivo e impessoal dizer “o deus tal criou tal coisa”, os jogadores vão chiar quando qualquer discrepância, por menor que seja, surgir. Se o parágrafo é atribuído a um teólogo do cenário, ou um “acredita-se que…” é usado, a certeza se esvai e as possibilidades de surpresa se multiplicam. Você entende algo de física quântica e achou interessante usar alguns conceitos em seu sistema de magia — nada mal, mas não vá tentando enfiar “enlaçamento quântico” (quantum entanglement) na goela dos jogadores, o clima vai se dissipar; “Lei da Similaridade” soa mais esotérico e faz o serviço (e apenas os conjuradores vão fazer idéia do que seja). Quando você atira uma pedra e ela descreve um parábola, ela vai fazê-lo independentemente de você conhecer o princípio ou não.
Usar conceitos absolutos, irrefutáveis — sejam científicos ou sobrenaturais –para descrever o mundo de jogo é como construir um arco: você se utiliza de uma armação de madeira para segurar as partes no lugar, e quando a pedra final é posta, o arco adquire estabilidade e as armações de madeira são retiradas. Você como criador/mestre pode conhecer a armação, mas esconda-a bem dos jogadores. RPG é diversão, e, opinião pessoal, é mais divertido ser surpreendido com algo diferente do que eu imaginava do que um fleumático “Eu já esperava por isso…”

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