Gente, eu coloquei este texto assim, como nova postagem, porque ele ficou grande demais para ser colocado como resposta. Mas nada mais é que a tal resposta prometida, na discussão sobre cidades. Quem quiser pode dar uma lida no debate todo.
Ok, vamos então às respostas.
Magia! Pois é. Eis um assunto que eu encaro com muito cuidado, ao pensar em ambientes de fantasia. E vamos encará-lo, então.
Antes de mais nada, sempre é bom lembrar, estamos falando de criações fictícias. Isto significa que tudo é possível e as únicas fronteiras são os limites de criatividade e a vontade de criar de cada indivíduo. Portanto, se alguém me disser “No meu cenário todo mundo consegue lançar laser pelos olhos. Até os pombos.”, eu irei aceitar tranqüilamente. Afinal, é o cenário dele, a criação dele. O que vou escrever aqui tem mais a ver com “ajustar o seu cenário para que ele lide bem com suas criações” do que ditar regras férreas de como a magia deve ou não deve ser.
Vamos então pensar um pouco. O que é magia, para você? Eu acho interessante encarar a magia como um recurso energético (magia natural), e a prática da magia como uma tecnologia.
do Gr. technologia < téchne, arte + lógos, tratado
s. f.,
teoria geral e estudos especializados sobre os procedimentos, instrumentos e objectos próprios de qualquer técnica, arte ou ofício;
Bom! Então, se considerarmos estas definições como possíveis, então temos a alternativa, em nosso cenário, de existir uma tecnologia que faz uso de um recurso energético. Isto significa que temos uma revolução tecnológica nas mãos. Como toda revolução, ela irá afetar a vida dos indivíduos enquanto seu uso na sociedade é definido.
Vamos pegar um exemplo concreto. A tecnologia das armas de fogo na Europa (os primeiros canhões europeus) permitiu aos atacantes, na idade média, concentrar seus golpes em um único ponto na base dos muros de castelos, coisa impossível anteriormente com as armas de cerco convencionais. A nova tecnologia tornou necessário o desenvolvimento de uma tecnologia de defesa que fizesse frente aos canhões, aposentando um sistema (muralhas altas e esguias) que contava com mais de 3000 anos de uso bem sucedido. Ao mesmo tempo mudou o status social de vários grupos, como os sineiros, únicos com o conhecimento de como moldar um canhão numa única peça de bronze (que passaram de artesãos livres a armeiros reais, cobiçados por diversas nações e com direitos de ir e vir cerceados em várias ocasiões), os mineiros, os projetistas, os farmacêuticos… também aposentou tecnologias, como os temíveis Trabucos e, à medida que o canhão evoluiu para as armas de mão, os arcos, bestas e espadas, que não podiam fazer frente aos baixos custos e eficácia das armas de fogo. E influenciaram outros setores tecnológicos, como a metalurgia, química, artes marciais…
E não vamos nem falar nas revoluções industriais que varreram o mundo, da história antiga até hoje. De momento basta pensar neste conceito: Qualquer tecnologia causará algum impacto, sendo mais ou menos abrangente de acordo com as vantagens que a tecnologia oferece.
Ok? Então vamos voltar para nossa ficção, e para a magia. Tomemos agora o exemplo citado pelo Nume: “Uma cidade com muita magia pode fazer uso ostensivo de portais mágicos em detrimento de estradas”.
Pode? Poder, pode. Mas como isto iria afetar todo o cenário? Vamos primeiro pegar o conceito e jogar dentro do sistema básico do D&D, sem alteração alguma. Eu pedi ao Nume para buscar alguns valores no livro, que reproduzo abaixo conforme explico estes cálculos:
Se vamos usar portais no lugar das estradas, consideremos quanto custam as estradas e quanto custam os portais. Eu vou usar como base uma estrada muito larga (do ponto de vista medieval: 6m), bem pavimentada… enfim, uma estrada de ótima qualidade.
Salário médio de um plebeu (os peões que tocam a obra): 1 PO por ano.
Salário médio de um técnico especializado (o projetista da estrada): 10 PO por ano.
Vamos dizer que temos um técnico para cada 30 peões. Significa que o serviço de cada peão assistido está me custando 1PO + 10/30 PO = 1,34 PO/ano.
Um peão consegue cavar/construir 1m² de estrada por hora. Coloquemos uma carga horária de 8 horas por dia, 288 dias por ano. Então, cada metro quadrado está me custando 1,34/(288×8) = 5,815972 x 10^-4.
Como eu estou usando uma estrada com 6m de largura, cada quilômetro linear de estrada está custando (5,815972 x 10^-4) x 6 x 1000 = 3,5 PO.
O custo de materiais para uma estrada medieval tenderia a zero, sendo recolhidos ou escavados no próprio local. Como estamos fazendo uma estrada muito boa, vamos dizer que o custo de material seja o dobro do custo de mão de obra. Então, nossa estrada está custando aos cofres reais 3,5 + (2×3,5) = 10,5 PO/Km.
Agora, vamos ao custo do portal. Segundo o Nume: “Preço de conjuração de uma magia de 9º nível (Círculo de Teletransporte): 138.700 PO.
Preço de conjuração de Permanência sobre uma magia de 9º nível: 42.500 (Totalizando 181.200 PO).
Há de ser dito que em cenários de alta magia os custos de conjuração devem cair pela metade ou mais.”
Ok. Vamos dividir pela metade, considerando que estamos em um cenário de alta magia. Então temos cada portal nos custando 181.200/2 = 90.600 PO/portal.
Um portal, que me levará a um lugar específico apenas (e, pelo que entendi, dentro da própria cidade), custa mais que construir 8.628 km de estradas largas e bem feitas. Lembrando que a distância de Lisboa a Moscou é de pouco mais que a metade deste valor (4.573 km).
Parece que não foi desta vez que os magos tomaram o emprego dos pedreiros. Apenas alguém que precisasse desesperadamente desta opção iria gastar tanto dinheiro com ela. (imaginem então aquele bem-bolado sistema de portas dimensionais que pode existir num calabouço, para proteger um tesouro que não chega a duas mil peças de ouro. É um caso em que o tiro é mais caro que a espingarda).
Mas vamos mexer um pouco com as possibilidades. Digamos que eu QUERO que uma magia destas seja comum em meu cenário. Então ela precisará passar por um processo de banalização. Isto significa que ficará mais barata e mais acessível. Eu diria que, uma vez que essa magia tornou-se barata e acessível, quase todas as outras também se tornaram, mas vamos lidar primeiro com a opção de que apenas esta foi banalizada.
Torná-la acessível significa que um número maior de magos, em níveis mais baixos, possuem acesso a ela. Ela chegou ao status de “transporte de luxo, mas não tão raro que eu não possa colocar no portal de minha cidade”. Então, pessoas ricas poderiam pagar para ter um “mago chofer”. Casas da guarda, templos, salões de tesouro, todos estes lugares teriam proteções contra este tipo de mágica. Logo as mágicas de proteção estariam banalizadas também. Outras profissões buscariam dar soluções mais eficazes para o problema. E a bola de neve rola, rola, rola…
Se banalizarmos todas as magias, então poderemos ter sociedades inteiras totalmente voltadas para a mágica. É o caso dos livros de Harry Potter, onde a magia não é, na sociedade dos bruxos, mais especial do que é, para nós, a internet. No mesmo “cenário” de Potter, a sociedade “trouxa” não conhece a magia, o que dá chance para explicar a existência de soluções tecnológicas “normais” coexistindo com soluções “mágicas”.
De qualquer forma, o que pretendo dizer é que vale a pena parar um pouco para pensar em como vocês querem que a magia atue em seus cenários, e não descuidar das conseqüências possíveis (Eu gosto de lidar com as conseqüências, portanto não estou dizendo para ninguém evitar colocar magias).
Agora, como eu lido com isso?
Eu gosto de pensar, em propostas de cenários com muita magia, na magia dividida em níveis de complexidade, eficácia e abrangência. Com magias muito simples, provavelmente magias de proteção ou coisas afins, que são de conhecimento popular, passadas entre as pessoas como se fossem simpatias. Magia um tanto mais complexas, mas ainda bastante banais, que são vendidas a preços módicos nas feiras (como pequenos pássaros de madeira que voam e piam quando alguém manda, ou poções um tanto mais sérias e caras, como aquela poção que traz ventos para as embarcações que aparece em “O Castelo Animado”.) Muitos magos seriam meros comerciantes, com um conhecimento restrito. E magias caras e complexas, de conhecimento de poucas pessoas, ou com o uso muito restrito, algumas por restrição militar (A nação X não pode obter nosso segredo de como chamar os raios!), outras por razões pratico-filosóficas (Equilíbrio: Se muitas pessoas usarem “criar água” ao mesmo tempo, poderão causar uma seca muito grave em outra a região e arrasar as plantações), econômicas, religiosas, morais, sociais… Podemos inventar diversas razões plausíveis para restringir o uso de quaiquer magias. Ah, claro! E magias únicas, por que não? Magias tão poderosas ou tão desconhecidas que só podem ser usadas por uma ou duas criaturas em todo o planeta.
Gosto muito da idéia de conseqüências, fazendo com que o mago pense bem ao decidir se usa ou não usa determinada magia.
Também gosto da idéia de fazer as magias “verdadeiras” serem um tanto raras e complexas, para permitir aos jogadores interpretarem suas pesquisas e a forma como eles irão personalizar suas magias. Como implementar isto no jogo, aí é questão de criatividade.
Finalmente, para fechar este texto e partirmos pro debate, eis algo que eu definitivamente não gosto: a mágica como muleta. É aquela prática sem-vergonha de explicar alguma coisa perfeitamente banal, cuja solução material seria não apenas possível, como a mais indicada, com um mero “É mágica…”, que me faz ter certeza de que o mestre do jogo não se preocupou nem em olhar a imagem do objeto que ele está descrevendo. É a solução por preguiça, não por criatividade.
E pior que me deparo, de quando em vez, com projetos de estruturas “magicamente sustentadas” na vida real…