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Resenha – O Terceiro Deus

New Weird Nacional

Por Bruno “BURP”
Bueno, o que começar dizendo sobre O Terceiro Deus? Talvez que é um livro cheio, daqueles que reúnem uma quantidade tamanha de elementos, tanto no próprio conteúdo como no que representa, que é difícil achar um bom ponto de partida para uma resenha, e de não sentir um certo medo de esquecer de comentar alguma coisa importante. E também que é o terceiro e último livro da já batizada Trilogia Tormenta, escritos por Leonel Caldela, que começou despretensiosa com O Inimigo do Mundo, seguiu com O Crânio e O Corvo, e agora se encerra de maneira épica e grandiosa como toda história de fantasia e aventura deve fazer.
Pessoalmente, não acho que seja o melhor dos três, que pra mim é facilmente o segundo. A narrativa segue técnica e bem-cuidada, como já é marca do autor, apesar de eu ter notado um ou outro deslize, como uma ou duas frases que parecem mal-escritas ou parágrafos mal-encadeados – mas, claro, aí também é só o meu lado de pseudo-escritor arrogante e chato querendo aparecer, e mesmo assim são em quantidade mínima demais pra fazer alguma diferença no final.
O enredo geral, no entanto, parece sofrer de alguma falta de foco, de um fio condutor mais evidente, culpa provavelmente da quantidade de pontas soltas que era necessário resolver desde o primeiro livro. Mesmo o tema que o título sugere (que qualquer um familiar com o cenário vai saber qual é) acaba sendo meio periférico, só envolvendo os personagens principais pra valer lá pelos momentos finais, e no fim parece um pouco vago e inconclusivo.
Outro problema que eu notei foi a falta de naturalidade no desenvolvimento da história em alguns pontos. Não é nada que a torne realmente fraca, mas é que se tem alguma coisa que nunca me desceu bem são cenas e situações que evoluem apenas a partir do maravilhoso e inexplicável, de caminhos apontados em sonhos ou reencarnações aleatórias, ou qualquer outra variação do “aconteceu assim porque tinha que ser assim”. Entendo que isso faz parte do cenário e do gênero, claro, mas é algo que não me agrada, gosto pessoal mesmo. Até gosto, por exemplo, da forma como isso aparece n’O Crânio e O Corvo, onde um sonho chega a ter um papel menor em um determinado momento, fazendo uma conexão entre dois personagens; mas aqui às vezes parece que algumas coisas simplesmente não aconteceriam não fosse toda uma conjunção planetária estar a seu favor.
E tem os deuses também. Já disse algumas vezes que não sou muito fã de politicagem divina, mas isso não é uma verdade completa – gosto quando deuses têm personalidade, quando são de fato personagens, e os deuses de Tormenta certamente são assim, sobretudo na visão do Leonel. Eles têm participações decisivas e muito interessantes e bem encaixadas, sem dúvida; no entanto, achei estranho a forma como se relacionam com o mundo, especialmente após um certo acontecimento bombástico lá pelo meio da história. Parece que não passam de algum tipo de celebridades instantâneas, como uma grande edição do Big Brother Panteão, que alimenta revistas de fofocas e conversas de donas de casa sobre os casos e brigas dos participantes, os últimos indicados ao paredão, os novos que podem entrar para a casa, etc.
Mas chega de falar de defeitos – assim até parece que eu não gostei do livro. Pra além de tudo isso, ele segue a viagem pelo mundo de Arton sob a ótica do Leonel, com a sua visão rica e exuberante sobre reinos, situações e personagens, revelando aquelas nuances e elementos inesperados que sempre estiveram lá, escancarados, e só não eram vistos do ângulo correto.
Acho ótimo a forma como ele assume Arton como um pastiche, uma colcha de retalhos, e assim não tem medo ou vergonha de retirar do fato o melhor que ele pode oferecer – caubóis, tropas de elite medievais, bardos punks; o céu é o limite, e talvez nem ele, em uma chuva de referências que vão desde As Mil e Uma Noites até teorias da conspiração. A abordagem do fantástico feita pelo Leonel é o mais perto que há de uma New Weird nacional, na minha modesta opinião; os monstros insetóides impossíveis, a magia exuberante da Academia Arcana, pseudo-ciências como as da tecelã de realidades e da ordem de vidência e numerologia: tudo isso podia estar facilmente entre os melhores momentos de um livro do China Miéville, por exemplo.

Os novos personagens não chegam a ser os mais inspirados e cativantes da trilogia, mas ela ainda vale, e muito, pelos antigos. De Orion Drake, o Bruce Willis artoniano, ao seu rival Crânio Negro, talvez aquele cuja personalidade e motivações são mais aprofundados neste volume, são muitos os que valem a leitura, e fazem ela fluir rapidamente pelo simples fato de que você se importa com eles, e quer saber o que lhes acontecerá. É ótimo saber o destino final de personagens e situações que nos cativam desde O Inimigo do Mundo, além de sorrir timidamente com algumas participações especiais inesperadas.
E também o destino final de muito mais, na verdade – O Terceiro Deus não conclui apenas a história dos três romances, mas também de enredos e ganchos que estão soltos no cenário desde a sua criação. Se O Inimigo do Mundo era tímido e despretensioso em fazer mudanças e avanços, e O Crânio e O Corvo já se sentia um tanto mais solto e ousado, o que se tem aqui é a maior quantidade de reviravoltas reunidas que Tormenta já sofreu, justificando a nova edição do RPG que deve ser lançada no próximo ano. Depois de uma década de passos de formiga, é ótimo ver um avanço tão grande. Aliás, é um pouco curioso como alguns ainda chamam Tormenta de fantasia juvenil e cor-de-rosa, quando todas as grandes sagas épicas dele parecem acabar de alguma forma com a punição de heróis e o sucesso de vilões.
Enfim, vale a pena correr atrás d’O Terceiro Deus? Sinceramente, não sei. Não sei até que ponto, por exemplo, ele pode ser lido de forma independente, sem conhecimento do cenário ou dos romances anteriores – a mim pareceu que pelo menos a leitura d’O Crãnio e O Corvo é importante, para entender o significado que têm as mudanças e atitudes de alguns personagens; e talvez seja mesmo necessária alguma familiaridade e simpatia pelo cenário para apreciar a importância de certos acontecimentos, mesmo que não ao nível do fã acéfalo ou de acompanhar todos os lançamentos de perto (até porque eu mesmo não compro os livros de RPG há um bom tempo). Para quem tem essa familiaridade e simpatia, no entanto, é uma grande leitura, que recompensa todas as horas gastas para usufruí-la. E felizmente, é justamente este o meu caso.

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