Ícone do site RPGista

Vencedor da promoção .20 de outubro!

Yo!

Sim, saiu. Um pouco atrasado, por vários motivos, mas o resultado está aqui. E o vencedor é Mário Henrique Benevides, com o o conto Nunca mais, ele vai receber em casa um exemplar de dos dois volumes da série de suplementos Sem Trégua.

Lembrem-se, a promoção de novembro ainda está rolando, envie uma tirinha autoral com o tema piratas para concorrer a trilogia de aventuras de Porto Livre.

A seguir, o conto enviado, leiam e entendam porque ele foi o vencedor!

Nunca mais

A Fortaleza de Xar-komah fora erguida há sessenta anos, vinte léguas a nordeste da grande cidade de Sul. Ainda distante dos portões, o Cavaleiro a olhava, perdido na beleza envelhecida dos muros que desafiavam o deserto. As Planícies da Pedra Sangrenta se estendiam além da visão dele, queimando o ar e endurecendo a imagem do mundo. Ao longe, em uma das torres do forte, a bandeira consagrada de Menoth, deus da criação, era hasteada, em honra à chegada da comitiva. O Cavaleiro respirou fundo sob o elmo pesado e orou, agradecendo o direito de sobreviver à viagem.

Os demais membros daquela caravana oficial não estavam tão felizes. Sete guerreiros mal pagos e doze serviçais cheios de medo compunham o corpo da comitiva enviada de Ímer, a capital do Protetorado. Eles tinham fome e raiva. Uma raiva oculta, soterrada pelo temor de que o Cavaleiro percebesse sua falta de devoção. Mas acima de tudo, eles estavam desolados como o deserto; tristes pela missão dada: rumar até aquele lugar cruel, no meio do vazio ressequido que abraçava o leste do Continente. Um lugar que escondia horrores na fronteira do mundo para eles civilizado.

Lorde Aaran, o Cavaleiro, observou então os portões sendo abertos – placas enormes de metal quente se movendo pela força dos vigias. Manteve o passo do cavalo, certo de não abusar do esforço do animal. Aaran sempre recompensava bem os que os serviam bem. E assim, na medida em que cruzava os últimos metros de marcha, ele pensava sobre o castigo que daria aos homens da comitiva, pobres e desventuradas almas que o seguiam sem a devida a fé de um servidor de Menoth. “Castigos são lições” pensava ele “Oportunidades honradas para recuperar honras perdidas”.

De dentro dos muros, no topo da torre frontal, Decari, o alcaide, tremia. Seu maior medo estava ali, do outro lado das paredes, montado em um belo corcel e vestindo a pesada e assustadora armadura dos Cavaleiros Exemplares. O menofixo, tingido de vermelho sobre o ombro esquerdo da couraça, deixava claro que aquele era um dos verdadeiros servidores do Templo. Decari quase sentia suas entranhas se movendo, como se elas estivessem buscando refúgio em sua garganta… O calor infernal só aumentava a sensação desagradável de estremecimento. O alcaide, mestre da Fortaleza, entendendo a gravidade da presença de um Cavaleiro como aquele, entendia também que sua incompetência em resolver o “problema”, seria punida. Mesmo assim, não fugiu. Seria pior, ele imaginava, com razão. A crueldade do deserto iria rivalizar com a possibilidade de captura pelos homens do Templo. E Menoth sabia ser impiedoso através de seus clérigos; homens de uma criatividade mórbida para com os infiéis.

Aaran entrou na fortaleza, seguido pelo restante da comitiva. Mal o fizera e já descia da sela, lançando as vistas sobre as trinta pessoas espalhadas pelo pátio: soldados, pajens, artesãos e escudeiros. Ignorou por longo tempo seus próprios comandados diretos. Esperou, sem pressa, que um dos oficiais viesse até ele: um homem velho, de cabelos longos e barbas mal cortadas, vestindo uma cota de malha – e suando muito por isso. O Cavaleiro não retirou seu elmo e se manteve firme. O velho oficial tentava esboçar semelhante postura, mas se sentia minúsculo diante do homem à sua frente: uma estátua de metal com sua vasta capa branca a lhe correr pelos ombros; uma atitude indecifrável, um rosto encoberto pelo aço.

? Saudações, meu senhor! – disse o oficial, em uma reverência rápida – Estamos felizes que o senhor tenha chegado bem. O alcaide lhe deseja boas vindas e avisa que logo o receberá. Sagrado seja o nome de Menoth…

? Sagrado seja – proferiu Aaran, secamente. Seus olhos fitavam o oficial de forma dura e o Cavaleiro não se demorou ali. Com passos sólidos, como se não houvesse peso ou calor, ele se dirigiu às escadas da torre, dispensando com gestos a escolta de seus guerreiros. Ninguém ficou em seu caminho e logo Aaran subiu os lances curtos da escadaria, ganhando altura na marcha, deixando um silêncio atrás de si. Parecia guiado por saberes que ninguém mais entendia.

Decari estremeceu um pouco mais ao ver que o Cavaleiro vinha a seu encontro. Olhou para os dois espadachins a seu lado. Os homens então se colocaram a frente dele, mãos suavemente pousadas nos punhos das espadas.

Aaran venceu a torre e se pôs diante do trio. Podia ver a muralha mais abaixo, assim como o chão sem fim de rochas e calor do deserto.

? Alcaide Decari… – disse o Exemplar em uma voz calma, parado no topo do terraço – … Estou aqui por ordem do Templo. O senhor deve saber que Menoth não está satisfeito com o vosso trabalho. Deve saber também, que o Templo lhe dedicou uma missão cheia de honra. Que o Templo esperava que o senhor fosse um homem digno da tarefa. Mas o que acontece nesta Fortaleza passou a ser conhecido pelos infiéis. O senhor permitiu que uma sagrada missão fosse conhecida por nossos inimigos. Mais do que isso, o senhor deixou que segredos consagrados que o Templo guardou aqui caíssem nas mãos deles. O senhor sujou a bela imagem da Fortaleza de Xar-komah e irritou o clero. O que o senhor tem a dizer?

Decari respirou fundo… Seus nervos pareciam inchar, agora. O sangue corria mais rápido dentro dele e seus pensamentos dançavam, buscando boas respostas, respostas confiáveis, respostas vitoriosas… O sol crepitava acima dele e o Cavaleiro estava parado, como se o tempo desaparecesse. O vento não parou de soprar, contudo, e a bandeira de Menoth ainda trovejava a seu lado.

? Foi… Um erro… Meu senhor. Achávamos que poderíamos confiar na honra de todos em Xar-komah. Achávamos que os que suportaram a dura viagem e o exílio… Um honrado exílio… Saberiam respeitar o silêncio de nossas tarefas… Não imaginávamos… Eu não imaginei… Que a traição viria de tão perto… Não… Pude.

Aaran ouviu com paciência e frieza aquelas poucas palavras, tão cheias de tentativa. Escutara e media o argumento tremulante de Decari. Fechou então seus olhos sob o elmo… Deixou o Dom agir… O Dom que o Menoth lhe dera… Sentiu o ar escurecer e esqueceu das dores em seu corpo, das feridas queimadas que ardiam sob a couraça… Deixou de lado o sufocamento que quase lhe vencera… Manteve, com uma extrema força, a aparência de invencibilidade… Esse era seu trabalho… Sua forma de honrar seu deus. Concentrou-se um pouco mais… Viu, dentro da escuridão, um eco frágil das palavras de Decari. Viu as frases decompostas, como que névoas… As viu se desfazer e girar, quebradas pelo poder divino. E soube que ele mentia.

? Você deveria saber, Alcaide. Deveria saber que a mentira se rasga diante de Menoth. Você não é digno dele… Nem da vida que ele lhe deu.

A espada, farpada e ampla, já repousava nas mãos do Cavaleiro, retirada como um raio de sua bainha. O cansaço que ele sentia, mais uma vez era deixado de lado… Os dois espadachins partiram em luta, financiados pelo ouro de Decari. O primeiro atingiu a placa do ombro de Aaran, inutilmente… A arma do Cavaleiro veio de cima, empunhada com um vigor apavorante, iluminada pelo sol à pino. Ela cortou o homem no meio do crânio, sem que sua vítima soubesse quando. O segundo soldado arremeteu com a lâmina em posição horizontal. A ponta da espada insistiu por entre as brechas da armadura de Aaran, até arrancar sangue do Exemplar. O Cavaleiro o odiou por um instante e girou a espada em uma diagonal baixa, cortando clavícula, costelas e carne. O espadachim caiu e teve tempo de se ver morrer. Aaran respirou, enfim.

Decari sacou a pequena pistola que sempre levava consigo. Hesitou, contudo. Observou o Cavaleiro, parado a dez passos dele. Sabia que não conseguiria matá-lo. Não era exímio atirador. Não poderia vencer a couraça dos Exemplares e ainda ferir de morte seu algoz. Lembrou das planícies e das casas de banho de Sul. E lembrou das palavras de sua filha. “Temos de fazer isso, pai. O ouro pode nos tirar daqui”. Lembrou, por fim, das histórias sobre as masmorras de Ímer e da sombra gelada dos Clérigos da Capital. Então, apontou a arma para a própria têmpora e puxou o gatilho.

* * *

Helene se misturou na aldeia idriana como pôde. Sua pele queimada de sol não enganaria ninguém: seu semblante suave a seus olhos assustados com o deserto, confirmariam seu sangue caspiano-sulês em qualquer lugar. Mesmo assim, o véu negro e o xale lhe permitiram caminhar em meio às tendas do mercado temporário de Ishaur, sem atrair suspeitas. Estava há léguas de qualquer cidade “mais civilizada”, como diriam os homens dor Reinos do Ferro. Ídria, a ampla e rochosa terra que cobria o mundo do leste – e que os Ocidentais teimavam em chamar de Planícies da Pedra Sangrenta – era, a seu modo, uma civilização. Os nômades da região compravam e vendiam qualquer coisa, acostumados a vagar no extremo dos dois universos: o seu e o dos povos arrogantes do lado oeste do Rio Negro. Os idrianos sempre foram assim – pensava Helene – seguidores convictos de suas próprias habilidades e mestres incomuns de um reino, não de ferro, mas de areia e luta. Foi dessa forma que ela escolhera, sem meditar demais, para onde fugir. Quando seu pai descobriu suas artimanhas, seus negócios proibidos com o homem estrangeiro, ela não teve escolha. Tentara convencê-lo, mas sabia que não poderia. Então, sabendo também das duras conseqüências de seu ato, tomou seu plano inicial e deixou para trás Xar-komah e o serviço ao Templo. Nos primeiros dias esteve triste, por seu pai e pelo possível destino que o aguardaria. Mas, sempre amara, antes de tudo, a si mesma e, por esse amor, esqueceu de tudo e seguiu.

Do outro lado do mercado de tendas, além da poeira apressada que rugia nos rochedos ao Norte, três gigantes caminhavam resolutos. Suas grandes silhuetas, semi-encobertas pela areia nos ares, davam a entender que eram figuras fortes, quase monstruosas para uns, incontestavelmente bestiais para a maioria. Eram ogruns, impassíveis mercenários não-humanos, vestidos à sua maneira com couro e metal; figuras maiores que os maiores homens. Trazia grandes espadas, presas às suas costas poderosas. Andavam, no entanto, como se não carregassem nada, como se fossem nobres, eretos e imponentes. À frente deles, um homem montado galopava com furor, observando a miríade cinzenta de barracas de comércio dos idrianos. Ele, como seu cavalo, queria água e descanso. Ainda assim, fazia círculos ocasionais, voltando e tomando o mesmo rumo a cada minuto, impaciente com o andar lento de seus comandados.

Os homens das várias caravanas de Ídria pararam para ver a chegada do estranho. Ele era jovem e vestia mantas brancas, ferindo com uma luz refletida os olhos mais curiosos. Seu cavalo castanho mal alcançou o círculo do mercado e caiu, exausto. O cavaleiro, ainda tonto, se pôs de pé, sacudindo as roupas e olhando a pequena multidão que o observava. Sorriu um sorriso aberto, sincero, fazendo gestos amplos, como se quisesse cortejar a todos sem dizer palavra. Não percebeu quando a forma esguia de Helene se aproximou, marcando o passo e atravessando a massa de pessoas aglomeradas. Nem mesmo quando ela surgiu a sua frente, bonita como antes, com olhos claros a admirá-lo.

? Edrek! – disse ela, sem conseguir esconder a felicidade no tom.

O estranho abandou sua platéia, que lentamente se esquecia dele e circundava o trio de gigantes armados que surgia em seguida. Edrek diminuiu o sorriso, sacudiu a capa alva e olhou para a mulher.

? Helene… – sua voz veio baixa, mesmo sabendo que as atenções não estavam sobre eles – Parece que nos encontramos, de novo.

Helene se aproximou rápido, investindo e abraçando o rapaz – os costumes foram esquecidos e ela o beijou.

? Não posso crer! Por Meno… – a frase sumiu. Helene lembrara que não era mais serva desse nome. – É tão bom vê-lo, Edrek! Tive medo. Foi difícil. Eu… Não poderia… Eu… Não posso mais voltar.

? Acalme-se – sussurrou Edrek, com um sorriso pacato e jovial – você está segura, agora. Apenas me diga que trouxe o último. O último dos desenhos.

A mulher se desvencilhou suavemente, sem parar de sorrir. Os dois se afastaram e sumiram na sombra de uma das tendas maiores. Ela abriu a algibeira, com um cuidado longo e sentiu a ansiedade nos olhos do estrangeiro. Parou seu gesto, perguntando:

? Você… Vai mesmo me levar? Me tirar daqui? Você me disse que esse lugar era seguro. Mas não quero ficar aqui. Essa gente… Não gosta de gente como eu. Logo vão fazer perguntas. Logo…

? Você precisa ter paciência. Precisa entender, meu Amor… – interrompeu o rapaz, sua mão pousando sobre o ombro de Helene – Vou tirar você daqui. Vou levá-la para longe, para o mar. Já não lhe prometi? Você… tem que ficar aqui, por mais alguns dias. O mercado dos nômades ficará neste vale por mais uma semana. Estará segura. Você ainda tem o ouro que lhe dei?

? Sim…

? Então? Preciso de tempo. – continuou ele – Ainda existem coisas à acertar. Logo teremos nosso lugar, distante de todos. Logo você vai ver o Mar. Logo, nada disso fará parte de nossos dias. Agora… preciso ver o desenho.

Helene, sentia o coração apertar. Ainda assim, retirou e entregou o papiro frágil que protegera por dias. Viu os olhos de Edrek maravilhados percorrendo as linhas desenhadas. Observou com cuidado a expressão de felicidade dele e sentiu até inveja da tinta. Deixou-se olhar para os muitos homens em volta dos Ogruns, guarda-costas de Edrek. Eram robustos e altos demais. Seus olhos vermelhos e escuros ardiam contra sua pele acinzentada. Dois deles traziam marcas em seus corpos: runas e signos que Helene nunca vira. O outro parecia mais sereno, mão estendida sobre o rosto, protegendo as vistas. Todos pareciam demônios-guerreiros e, no entanto, estavam pacificamente posicionados, esperando ordens de seu mestre humano. As pessoas o cercaram, algumas lhe oferecendo mercadorias, outras considerando comprá-los. Os três estavam indiferentes à curiosidade, esperando, sem definição, a próxima tarefa.

? Sim! Os projetos se encaixam… Quem poderia imagina o que se esconde nas catacumbas de Xar-komah? Agora, meu Amor… sabemos como manipular esse mesmo poder, graças à você… Tudo graças a você – As palavras de Edrek eram aveludadas, calculadas. Elas atingiram Helene ao mesmo tempo em que o afago em seus cabelos. Edrek mal podia esconder a alegria que sentia. Não tardaria para que a fortuna lhe caísse nas mãos.

? Agora, preciso ir. E você precisa esperar aqui. Os homens do Protetorado estarão a sua procura no Ocidente. Preciso ir ao encontro de meu contato no Rio Negro. Lá, conseguirei as permissões de que preciso e o pagamento de nossa coragem. Assim, minha bela, teremos nosso tesouro e nossa paz. Voltarei aqui, para buscá-la. Dê-me alguns dias.

Helene suspirou. Olhou para Edrek aturdida por uma saudade antecipada. Não queria perdê-lo. Mas sabia dos riscos.

? Esperarei – mentiu ela.

* * *

Os dois dias que se seguiram, foram mais fáceis para Edrek. Sua vida intensa de espião da Coroa lhe ensinara, muitas vezes, o poder de enganar jovens mulheres. Ele não olhou para trás e não sentiu pena da ingenuidade de Helene, assim como não sentiu pena da ingenuidade de outras jovens. O que importava era o projeto, o papiro simples, cheio de traços e notas. O segredo que estivera inacessível por tanto tempo.

A marcha seguiu firme naquela manhã. Em novo cavalo, Edrek andava com menos pressa, deixando sua poderosa e cara escolta há alguns passos na dianteira. Os gigantes ogruns singravam a planície, silenciosos, observando as pedras altas que se assomavam à frente, como obeliscos perdidos, feitos pela natureza. Edrek sorriu, mais uma vez. Sabia que era um viajante bem protegido; que seus companheiros ferozes assustariam assaltantes idiotas e monstros presunçosos. Ainda que estivesse em Ídria, um lugar de morte e aridez, estava pronto para tudo. O plano continuava perfeito. Os homens do rei teriam o que desejavam, mas Edrek só pensava na recompensa.

O primeiro tiro o derrubou da montaria. Veio do nada. O ombro ardia mais do que o chão do deserto e a munição rasgara mais do que carne – partira alguns ossos. Edrek amaldiçoou sua sorte, enquanto puxava a algibeira para junto de si. Não teve tempo de imaginar nada. O segundo disparo tirou a vida de seu cavalo, fazendo o animal tombar sobre ele. O peso lhe impedia de respirar direito. Os disparos se seguiram em uma rapidez de tempestade. Estampidos insistentes, cobrindo a área em volta. Os ogruns rugiram para o deserto, erguendo suas armas e impacientes com um inimigo que não viam. Um novo disparo mordeu a perna de Edrek, fazendo ele gritar um pouco mais. Novos trovões de pólvora ecoaram, vindos de todo lugar, agora. Eles espalharam o sangue da guarda pessoal do espião pelo chão de areia. Os gigantes, robustos e furiosos, cariam, um a um, rasgados pela crueldade sinistra de metais em fogo. Até que o silêncio cercou a tudo. Edrek sangrava muito e evitava se levantar. Retirou, sem muita fé, o sabre, pronto para algo que não sabia.

Minutos se arrastaram. O jovem olhava o céu azulado e calmo, sentindo o corpo fraco. Procurou seus comandados, guarda-costas que deveriam ser perigosos. Não os ouvia mais rugir. Então, cabeças ocultas por mantos apareceram sobre ele. Havia o cheiro de alquimia, de munição. Uma voz rompeu a calmaria. Uma voz cheia de um sotaque diferente do dos nômades.

? O Papiro. Onde está?

Edrek pensou em mentir. Sua vida era feita de boas mentiras. Mas a dor atrapalhava o pensamento. Uma lâmina surgiu em seu pescoço e Edrek segurou o papiro.

? Me… deixem viver. Eu… posso lhes dar… informações.

O golpe da lâmina levou o espião em silêncio, sujando de sangue o chão antigo. Apenas o vento lhe fez longa companhia, já que a reposta do carrasco nunca veio.

* * *

Chovia lá fora. A grande cidade de Caspia, com suas muralhas imbatíveis, com suas mil fornalhas, parecia maior do que as nuvens torrenciais. O mar, azul e violento, quebrava dolorosamente nos rochedos que protegiam a metrópole. Ali era o coração de Cygnar, duro inimigo da fé do Protetorado de Menoth. Do outro lado do Rio, a cidade menita de Sul se assomava – como uma irmã próxima e tão distante; ambas como metades divididas do que outrora era um mesmo lar.

Em uma das mais luxuosas tavernas, um ser corpulento se acomodava em uma cadeira alta. Sua postura era a de um nobre, ainda que ele fosse um bandido. Barkai era muito rico. Sua vida de mercenário o fizera o umbreano mais rico, entre todos os umbreanos que conhecia, permitindo que usufruísse do conforto da maior de todas as cidades. A vida para ele era simples. Consistia em matar o que se podia e subornar o que não podia. Abandonou, há muito tempo, as espadas pesadas. Aprendeu a amar a magia fervente do rifle, seu irmão de todas as emboscadas. Agora, à sua volta, tinha seus vários companheiros, todos satisfeitos com o resultado da missão. Doze outros matadores e ex-párias, como ele. Homens grandes, dotados de mais sagacidade do que os outros costumavam supor, arregimentadas por seu líder, compondo um bando hábil. Homens sem reino, acostumados, ao longo das eras, a servir para sobreviver. Menos Barkai, que aprendeu, no ardor do tempo, a controlar o que podia. A vida era simples.

Na mesa de pedra, o Papiro repousava, enrolado e deixado em paz. O cheiro de cerveja e o som de satisfação se espalhava pelo salão. Além da mesa do umbreano, outras se apertavam, abrigando homens das mais variadas etnias, vindos dos mais diferentes lugares. A porta se abriu, trazendo mais um viajante. Uma figura séria, pele queimada de sol. Ela cruzou as mesas, ignorou os demais, se colocou frente ao bando mercenário.

? Barkai de Tanare – disse.

? Você demorou – rosnou o senhor do bando – Trouxe o que pedimos?

? Sim – o estranho pôs sobre o tampo de pedra uma algibeira semi-aberta. Pedras brancas e azuladas reluziam dentro dela.

Do outro lado da mesa, Barkai de Tanare, sorriu.

? Vocês são estranhos em sua displicência. Desejam herdar o mundo inteiro, mas o querem sempre através do trabalho de outros. Como você pode ver, consegui cumprir com minha parte. O Papiro está aqui. Convenientemente intacto. Minha tarefa não foi difícil. Mas a sua sorte é que poucos pagariam o que isto vale.

? Trato feito então – a mão do recém-chegado se dirigiu ao papiro. Ele pouco se importava com a opinião do mercenário bestial. Sua respiração era controlada. Quando pegou o objeto, sentiu o mundo ficar leve.

Barkai apanhou a algibeira. Sorriu ao ver os diamantes que quase lhe acenavam. “As coisas melhoram depois da pólvora”, pensou. Aquilo era o suficiente para muitos anos. Um descanso mais do que tranqüilo. Até que ele se cansasse dele.

A frente dos bandidos, o homem alvo, cabelos ruivos, fez um cumprimento sem emoção e se retirou, sem mais palavras. Sentia-se feliz. Roubara um dos mais raros segredos dos servos de Menoth, deus da verdade, usando de tesouros e mentiras. “Assim é este jogo de sombras” disse, em pensamento. Seus mestres, negociantes sem nome da soturna cidade de Ceryl, no oeste do reino, ficariam ainda mais satisfeitos, concluiu ele. “O rei já tem coisas demais.”

* * *

Lorde Aaran bebia o vinho na fortaleza fria. O deserto deixara o calor se esvair sem poder lutar. Acima da vastidão do pátio de Xar-komah, um céu estrelado abraçava Calder, uma das três luas que regia as noites do mundo. O Cavaleiro contemplava a paisagem de sua sacada, na torre norte. A seu lado, um servo cabisbaixo, certo de sua inferioridade, segurava o jarro de bebida e ouvia seu mestre.

? Menoth ensina o valor dos muros. Ele nos criou e nos fez aprender a criar. Nossas cidades são a pálida expressão de sua vontade em vencer o Caos sujo. Veja, Urig: o deserto e suas areias se estendem e, com eles, uma imensidão de terras impuras e selvagens. Não fosse nosso dever atual, o de levar aos Reinos ocidentais a Palavra e a Lei verdadeiras, eu ficaria feliz em domesticar e ordenar os povos negros dessa triste região – Aaran sorveu mais vinho, longe de qualquer embriaguez. O lacaio ouvia, arriscando uma espiada no céu pontilhado, sonhando com outras coisas e outras histórias.

? Nossa batalha é árdua, Urig. Uma batalha contra a infidelidade e a ingratidão. Do outro lado do Rio Negro, Cygnar se regozija de sua própria impureza. É certo que eles aprenderam a tecer o metal, a forjar muralhas e a dominar o fogo. Mas eles esqueceram… esqueceram de onde veio esse largo e férreo conhecimento. Esqueceram do poder de Menoth… Como poderíamos permitir? Eles envergonham a raça humana!

Do lado externo, uma sentinela comunicava a aproximação de uma caravana. A notícia se repetiu para o homem da torre leste e logo estava nos ouvidos do Cavaleiro.

? Parece que nossos amigos chegaram – sorriu Aaran – Vá, Urig. Traga minha armadura.

Os portões deram passagem a sete cavaleiros fatigados.

? Nada, meu senhor. A mulher desapareceu nas planícies – suspirou um deles.

Aaran fitou o guerreiro. Odiou a incompetência em seu semblante.

? Ela não pode simplesmente sumir! É uma mulher! Com certeza morrerá no calor das estradas… Ou será violentada e roubada pelos bestiais do deserto! – as palavras de Aaran eram incertas. Ele se envergonhou. Afastou-se dos homens e começou a orar; Calder se movimentava lentamente no firmamento gelado.

Os homens se entreolharam. O medo passou por suas peles, medo vivo dos castigos. Respiraram e oraram, sem fé na misericórdia do deus ou de seu servo.

? Nós a encontraremos. Enquanto isso, continuem os trabalhos – ordenou o Exemplar, olhos fixos em alguns serviçais distantes. Os homens, aturdidos, desceram às catacumbas para repetir a ordem do Cavaleiro.

Fumaça negra subiu em largas colunas, partindo de chaminés baixas em Xar-komah. Ao longe, um idriano solitário vigiava o horizonte do forte, contemplando seus muros cheiros de segredos. Apeou o cavalo e partiu para longe, levando sua própria mensagem.

* * *

Um fogo brando queimava na lareira. O cheiro de canela estava por toda a parte, enfeitando o tempo. Helene abraçou as cobertas suntuosas. Seu corpo moreno, despido há horas, se deixava acariciar pelos tecidos nobres. Um homem mais velho dormia a seu lado, enquanto ela segurava uma carta vinda do deserto.

Alguns metros distante, sobre o tapete claro, adornado com pequenas pérolas nas bordas, um outro homem assistia, de pé, ao descanso dos dois. O charuto queimava pela metade, bem como sua paciência.

Helene o fitou, como se acordasse de um sonho.

? Então? – sussurrou ela.

? Seu outro amante está morto – disse o homem. Encontraram ele no deserto, semi-devorado por chacais.

A mulher baixou os olhos. Uma dor fina surgiu e ela tentou evitá-la.

? Eu gostava dele. Mas… sabia que poderia acontecer.

? Mercenários. Contratados de Ceryl, suponho. Eles pensam que conseguiram o papiro verdadeiro.

? Eles pensam o que querem pensar. Edrek se deixou enganar porque me achava tola. As pessoas se deixam enganar – respondeu Helene, se enroscando nos cobertores, cobrindo de todo a nudez.

O homem tragou um pouco mais e soltou uma fumaça cinzenta, digna de boas ervas.

? E o verdadeiro? Quando terei? – perguntou.

? Logo. Quando eu chegar a meu destino, um amigo irá levá-lo até você. E, por favor, não tente me seguir. Eu sei que Cygnar quer o projeto. Mas… honestamente? Eu sei que não precisam dele. Eu sei que o que vocês querem é… uma garantia. Querem poder se defender e eu respeito isso. Mas tudo a seu tempo. Primeiro, minha segurança. Já ficará feliz em saber que Xar-komah ainda mantém as obras. Eles ainda acham que podem me pegar e isso significa que Ímer ainda não sabe que as informações se perderam.

? Você busca garantias de todos os lados. Curioso. Diga-me, porque desconfiou de Edrek?

? Seu pupilo não era um bom mentiroso. Apenas se considerava um – Helene sorria, segura de suas impressões – por isso, pare de tentar me enganar. Não vai acontecer.

O homem, sério, atirou o charuto na lareira antes de desaparecer pela porta.

Helene deixou seu sorriso de lado. Pensou calculadamente nos próximos passos. Se levantou, vestiu suas roupas e o sobretudo de seu companheiro sonolento. Ela sabia da facilidade que sua beleza lhe dava. Sabia que tudo ficava fácil nos lençóis. E sabia que sua vítima, tranquilamente deitada, morreria pacificamente com o veneno lento colocado em seu vinho. Abriu a porta, pegou a algibeira do velho e saiu.

Cruzou as ruas movimentadas de Caspia, evitando as vistas com um chapéu escuro. Viu grandes carruagens e potentes cavalos disputarem o espaço urbano. Andou como um fantasma, lançando os olhos à volta. Pensava nos possíveis deslizes, nos erros que os outros cometem e que ela não poderia e não queria cometer. Alcançou a estação de trens e subornou um dos funcionários com as peças de seu último amante. Tomou o Expresso Caspiano e deixou para trás, mais uma vez, quem acreditava nela.

* * *

Em um beco escuro, esquecido pelos cidadãos de Caspia, Barkai de Tanare jazia morto. Traído por seus companheiros – ávidos pelo brilho dos diamantes e pela nova recompensa oferecida pelo sombrio contratante – o grande umbreano não teve tempo de rogar maldições. Golpes furtivos lhe atingiram em meio a seu divertimento com uma cortesã e o mercenário morreu em um misto de prazer e dor. As figuras fortes que o atiraram na imundice, ainda discutiram pela partilha das pedras, como que profetizando novas conseqüências do tesouro.

* * *

Os passos de Emeril eram sólidos. Ele chegou à porta de mogno e a empurrou. Uma bonita mulher caspiana o esperava.

? Senhorita…

? Mestre Emeril – respondeu Helene.

Emeril, o Ruivo, a fitou, fascinado por seus olhos.

? Teremos um acordo, enfim?

? Sua Fraternidade deseja o Papiro e o resto do projeto. Mas… eu tenho uma curiosidade… Por quê? – a pergunta de Helene pareceu desinteressada.

O homem voltou à realidade. Esqueceu da beleza e lembrou do tom perigoso da conversa.

? Imagino que isso não se trate de um ardil para aumentar o preço das informações verdadeiras…

Helene sorriu. Caminhou pela pequena sala e abriu uma das janelas. Lá fora, um grande rio se alongava. Barcos à vapor esperavam em um grande porto fluvial.

? Não se trata disso. Apenas gostaria de saber por que mudei toda minha vida…

? Não mudou sua vida. Você… parece ter um dom natural para o que faz. Nasceu para isso.

? Digamos que… crescer em Sul e ser exilada para o deserto são duas coisas que trazem muitas lições – os olhos de Helene se perdiam nas águas. Ela se voltou para Emeril e deixou seu sorriso ferir as defesas dele.

? Nós… não queremos que a Coroa tenha informações demais. – rebateu o homem.

Helene pareceu surpresa. Então riu alto, para depois voltar a fitá-lo.

Emeril continuou:

? Quando seu país conseguir terminar o projeto, teremos novas escaramuças na fronteira oriental. A Guerra virá e rasgará o flanco de Cygnar… Então… nós teremos o remédio. Nós venderemos as falhas do projeto.

? Vocês não são homens patriotas…

? O patriotismo é uma invenção engraçada. Somos homens de negócios.

? Mataram uma pessoa que eu amava.

? O espião? Você o enganou, assim como enganou os homens que o mandaram.

? O amor é… arriscado – disse a caspiana.

? Seu trabalho também.

Helene apontou para um barco, ao longe.

? Ali. A primeira metade do projeto está nele.

? Imagino, naturalmente, que você não fez outras cópias… – Emeril parecia estranhar a própria pergunta.

Helene andou na direção do homem. Ficou a alguns centímetros dele.

? Nem todos podem pagar o que eu quero.

? Decerto… uma quantia exorbitante. – disse ele, desconcertado – Mas a Coroa, com certeza, poderia continuar este “leilão”…

A boca de Helene dançou suavemente diante do queixo de Emeril, antes que ela falasse:

? Eu trai meu país. Mas não quer dizer que eu não deseje que o seu sofra. Sua Fraternidade, ao que parece, fará isso por mim.

Emeril se afastou, lutando contra suas vontades. Deu uma ordem seca na direção da porta. Dois homens entraram, carregando uma arca de ferro que terminou por repousar aos pés de Helene.

? O combinado.

Sem dizer mais nada os homens saíram. Emeril olhou uma última vez para a espiã. Cruzou o umbral da porta e partiu.

Helene olhou novamente o Rio. Observou os homens descerem o cais na direção do barco onde guardara a parte inicial do esquemas. Enviaria a outra metade, tão logo estivesse segura. Pensou nos homens da Coroa. No prazer que sentiu ao enganar aqueles que tanto torturaram seu país. Se percebeu estranha, contraditória e sem sentido, ao ter emoções tão complicadas. Sentiu o amargor da morte de Edrek, somado ao amargor de sua tentativa de traição. Se acalmou com a visão pacata das águas e lembrou das paredes ressecadas de Xar-komah. Pensou no Cavaleiro Exemplar e no exemplar castigo que ele receberia por não encontrá-la. Pensou em seu pai e na covardia dele. Pensou no dia de amanhã e das mentiras que seriam necessárias.

O disparo retirou seus sonhos e planos. Helene caiu sobre o parapeito da janela, o rosto ferido de morte, as vistas perdidas nos barcos que partiam. Ela não entendia o porquê de muitas coisas e não teria mais a oportunidade de tentar. A uma distância de segredos, o franco-atirador sabia que não precisava repetir o ataque.

* * *

? Ela está morta, meu senhor – disse o assassino. Sua fronte encoberta por tecidos claros.

? Acredita que a transação foi realizada? – perguntou o rei Leto, senhor de Cygnar; sua fronte carregada de consternação.

? Não. Ela buscou garantias. Não entregou todo o projeto.

? Então, ela não morreu em vão – meditou o monarca.

? Mas o conhecimento se perdeu – mencionou o ministro a seu lado.

? Sempre existirão espiões, Nalak. Eles continuarão atravessando os dias e noites e se valendo de nossas confianças. Eles sempre vão se esgueirar, por espaços e sentimentos, para obter coisas que outros desejam. Eu sinto muito que esta jovem tenha morrido. É uma pena, mas ela entrou em um jogo demasiadamente cruel. Sabemos que se a Fraternidade colocasse as mãos no projeto oculto de Xar-komah, o Estado estaria em perigo. Não precisamos de um inimigo chantagista dentro de nossas fileiras, muito menos de alguém que pode repassar, para outros inimigos, informações que são uma ameaça. Haverá outra oportunidade. Teremos a informação. Rezo aos deuses apenas para que ela nos venha logo.

? O senhor me assusta – disse o ministro – Estamos devidamente afastados de tudo isso? Quero dizer… a Coroa?

? Temo que nunca estaremos afastados deste jogo imundo. Aprendi, meu amigo, ao longo dos complicados anos sob esta coroa, que muitos são os perigos e muitos são os preços. A verdade é, vez ou outra, nossa inimiga mais insensata. E não me recordo de outro desafio tão fatigante: lutar contra a verdade dos dias.

? Nossos espiões na Fraternidade, ao menos nos fornecem alguma segurança… sugeriu Nalak.

? É o que espero. Mas, convém não esperar demais. Toda confiança não é cega? Cada vez que escolhemos acreditar nas palavras ou nas lealdades, saltamos diante do Abismo…

O assassino fez um gesto cortês e se retirou. Deixara para trás o rei e partiu sob o olhar do ministro. Nalak, ao lado de Leto, media os passos daquele homem sem rosto, cedido pelo Exército Real. Aceitara a indicação sob a condição óbvia que de que, terminada a missão, aquele soldado competente morreria em um acidente trágico. O rei desconhecia esse último dado. Era melhor assim. O Estado precisava se manter distante e a verdade precisava permanecer guardada.

Sair da versão mobile