Bas Lag
Perdido Street Station é um livro difícil de resenhar. Não que ele seja um livro absurdamente complicado nem nada assim; no entanto, a quantidade de elementos que ele consegue agregar, temas sobre a qual ele trata e assuntos que ele me instiga a falar é tamanha que eu até fico um pouco receoso de esquecer alguma coisa importante. Mas vamos lá, então, porque, difícil que seja, é também um livro sobre a qual certamente vale a pena comentar.
Apesar de se passar no mesmo mundo de The Scar, no entanto, o enredo de Perdido Street Station não completa com ele uma história única; há em cada um uma pequena referência aos personagens do outro, além de um pequeno detalhe deste que coloca em andamento os acontecimentos daquele, mas ambos são histórias completas e independentes, que apenas dividem um cenário em comum. Perdido Street é, ainda, um livro muito mais sombrio e pesado, com cenas perturbadoras e momentos que fazem a fantasia suja de um Inimigo do Mundo parecer bobinha e juvenil. Mas há, mesmo assim, alguns elementos que aproximam as duas histórias, e as tornam algo como romances irmãos – tanto The Scar como Perdido Street são anti-épicos de fantasia, que pegam os elementos tradicionais dos épicos fantásticos e os subvertem e modificam.
Os personagens, por exemplo, são, em ambos os livros, pessoas comuns – artistas, pesquisadores, jornalistas -, e não os reis, heróis e aventureiros tão típicos do gênero – aliás, para quem está acostumado com histórias de RPG, é especialmente marcante a forma como é retratado o grupo de aventureiros que, em dado momento, toma parte nos acontecimentos da história. O foco do livro, de qualquer forma, está nessa vida cotidiana de mundos de fantasia, onde a magia e criaturas fantásticas existem e são tratadas com naturalidade e rotina; poderíamos dizer que é uma espécie de fantasia realista, em oposição ao realismo fantástico de autores latino-americanos como Gabriel García Marquez e Jorge Luís Borges. E é em meio às suas vidas fantásticas cotidianas que os personagens acabam se envolvendo com questões maiores do que podem lidar, e são obrigados a fazer escolhas e sacrifícios que trarão pesadas conseqüências para todo o mundo à sua volta.
Apesar de lidar com personagens cotidianos, no entanto, nem The Scar nem Perdido Street Station deixa de ser, em qualquer momento, um épico de ação e aventura.
Ainda há, por exemplo, as viagens por pontos distantes de um mundo fantástico, com descrições deslumbradas sobre seus habitantes e situações – e não é porque em Perdido Street, principalmente, este mundo se resume a uma cidade que ele é menos vasto e impressionante, repleto de criaturas intrigantes e maravilhosas; é significativo que o livro abra com a chegada de um personagem à metrópole de New Crobuzon e termine com a saída de outro. A fantasia dele é predominantemente urbana, de tendências góticas, e não rural e selvagem como é tão típico do gênero; é um mundo de ciências taumatúrgicas e complexas máquinas à vapor, repleto de raças fantásticas e personagens característicos. E há ainda monstros enlouquecedores na melhor tradição de H. P. Lovecraft, um governo controlador e repressor que remete a George Orwell, e diversos outros elementos colados e encaixados com perfeição, como todo bom pastiche deve ser.
Claro, também não vou dizer que esta seja uma obra completamente livre de defeitos. Como o outro livro, este também começa bastante devagar, apresentando calmamente personagens e situações antes de colocá-los em conflito, ainda que o crescendo de ação aqui seja mais acentuado, e na metade final seja realmente difícil de largá-lo para fazer qualquer outra coisa. Mais para o final há também aparições relâmpagos de certos personagens que não parecem realmente fazer muito sentido além da vontade do autor de colocá-los na história; e é possível ver algumas pontas de moralismo em certos momentos que não condizem com o ambiente pesado e crítico que domina a maior parte do livro. Nada disso, no entanto, faz Perdido Street Station deixar de ser uma obra brilhante e magnífica, e uma leitura obrigatória para qualquer um que ache que literatura fantástica pode ser também madura e crítica, sem por isso deixar de ser envolvente e cativante.
Por BURP