Tormenta: magia não é desculpa

No meu post anterior sobre como o posicionamento das maiores cidades artonianas não faz sentido, algumas pessoas chamaram a atenção para o uso de magia para a resolução de problemas logísticos, para a qual a minha resposta é: vocês prestaram atenção no livro básico?
Sim, um clérigo poderia lançar purificar alimentos e salvar uma carga de produtos agrícolas estragados após uma longa viagem, mas purificar alimentos salva 1kg de comida por vez que é conjurado. Para salvar uma carga de uma tonelada, um clérigo teria que lançar continuamente a magia por uma hora, seis minutos e quarenta e dois segundos! Agora, um adulto consome cerca de três quilos de comida por dia, então uma cidade com dez mil habitantes consome 10.920 toneladas de comida por ano. Se um quarto dessa comida estragar (2730 toneladas) e precisar que um clérigo venha lançar purificar alimentos, isto significa três mil e três horas que o clérigo precisaria gastar nesse trabalho. Um ano tem 8760 horas, o que significa que o clérigo teria que gastar pouco mais de oito horas por dia, todos os dias, nisto. Neste ponto ele não é mais um líder religioso, mas um trabalhador braçal, não é mesmo? Quantos clérigos, pessoas com nível de classe aventureira, estariam dispostos a isto?
Mas essa nem é a questão mais importante. É quanto custaria a comerciantes manter esse clérigo trabalhando. Conjuradores cobram, para lançar uma magia de 1º nível, 10 TO. Esse é o mesmo preço de 1m² de seda ou uma vaca. Isso é coisa pra caralho a beça! Mesmo que o clérigo cobre um centésimo desse preço para lançar uma magia de nível 0, isto ainda é 1 TP. 1 kg de trigo custa 2 T$, ou 0,2 TP, se um clérigo lançar purificar alimentos, então, o custo deste quilo de trigo aumenta para 1,2 TP, uma inflação de 600%. Em um mundo onde o trabalhador braçal ganha 1 TP por dia, ele conseguiria então pagar por cerca de 800 gramas de trigo por dia. 800 gramas dos três quilos diários necessários para um adulto viver. E esse cara ainda pode ser um pai de família com a responsabilidade de alimentar crianças e outros dependentes. Entre três e seis meses nessa dieta, e esse pobre diabo e sua família provavelmente vão morrer de doenças ligadas à desnutrição. Mas é mais provável que ele morra primeiro na rebelião popular que com certeza aconteceria se comida tivesse um preço tão exorbitante.
Vi também alguém citar mochila de carga para facilitar o transporte. Gente, vocês já leram a descrição de uma mochila de carga? Em primeiro lugar, o tempo continua normalmente no interior da mochila e portanto coisas ainda estragam lá dentro. E mais importante, o preço de uma é 2.500 TO, ou o mesmo valor de compra de 50 trobos e suas respectivas carroças, cada uma das quais capazes de transportar uma tonelada. E por falar em carga, qual o limite de peso da mochila de carga? 100 kg. Então se você é um comerciante e tem 2.500 TO você 1. investe em algo que facilita (mas não faz) o transporte de 100 kg de carga ou 2. investe em algo que efetivamente transporta 50.000 kg de carga? Se você escolheu a primeira opção, parabéns, você é burro.
Por fim, há a galera que fica repetindo Vectora, Vectora feito um papagaio. Gente, não esqueci a cidade voadora não, é só que li a linha do tempo do cenário. Quando Vectora foi fundada em 1279 quase todos os reinos já existiam há mais de 200 anos. Hershey, última região a ser colonizada em Remnor, foi fundada em 1094, ou seja, 185 anos antes da fundação de Vectora. O primeiro assentamento permanente nos EUA foi Jamestown, em 1607, e 169 anos depois em 1776 os EUA fizeram sua declaração de independência. Ou seja, há tempo mais que suficiente para todas as nações de Remnor terem se estabelecido política e economicamente antes de Vectora ter entrado na jogada. As capitais a centenas de quilômetros de rios e oceanos são portanto anteriores à realidade de uma cidade voadora ajudando a logística. E por fim, Vectora demora um ano para completar sua rota. Trigo e milho tem duas colheitas por ano, com apenas arroz sendo uma colheita anual. Como são escoadas as colheitas que não podem ser sincronizadas com a passagem de Vectora?
O que me lembra de um detalhe que esqueci no artigo anterior. Agricultura tem uma demanda absurda por água. Dos três grandes (arroz, trigo e milho), o arroz é o mais sensível, sendo normalmente cultivado em campos alagados. Todos os grandes centros agrícolas pré-industriais são em volta de grandes rios: o Nilo no Egito, o Eufrates na Babilônia (atual Iraque), o Dnieper na Ucrânia e o Rio Amarelo na China. Então se pergunte: como é que um reino como Sambúrdia, cuja principal cidade está a centenas de quilômetros dos grandes rios, pode ser uma potência em termos de agricultura?
Enfim, para finalizar o assunto: magia é rara, cara e nem sempre é tão efetiva quanto você imagina que seja, pelo menos de acordo com as regras de Tormenta RPG e outros jogos d20. Sim, magia pode realizar milagres, mas milagres são, por definição, exceções à regra. Tentar utilizar uma exceção como desculpa para ignorar a regra é preguiçoso, não caia nessa.

João Paulo Francisconi

Amante de literatura e boa comida, autor de Cosa Nostra, coautor do Bestiário de Arton e Só Aventuras Volume 3, autor desde 2008 aqui no RPGista. Algumas pessoas me conhecem como Nume.

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11 Resultados

  1. SolCannibal disse:

    Muito bom adendo a matéria anterior sobre a questão dos mapas e como a apresentação do mundo desmorona diante de uma análise político-econômica deste.
    A questão dos limites práticos da magia no contexto do mundo é algo que oferece posibilidades interessantes de história a se explorar em um ou mais jogos, seja em Arton ou mundo completamente diferentes.

  2. Moisés Roberto de Araújo Mota disse:

    O problema é que o PJ enxerga o mundo como um WoW ou Ragnarok da vida, TODO MUNDO circulando pelo mundo tem acesso aos mesmos poderes. Quando na realidade aventureiro é uma “profissão rara”, ou pelo menos minoritária.
    O resto do mundo se vira como pode, ou seja vive do modo mais “normal” possível.
    Mas uma pergunta que sempre faço é: como a tecnologia se desenvolve com a existência da magia?
    Algo que me ajuda a pensar numa resposta é o anime A Lenda de Aang e usa continuação (A Lenda de Korra), em que boa parte da tecnologia se desenvolveu com base na habilidade de dobra elemental.

    • Então, há sinais dessa tecnologia mágica ao longo dos livros de Tormenta, mas falta uma descrição unificada dessa parte de Arton. Você vê algo como a Voz da Rebelião, um item mágico no Guerras Táuricas que é basicamente um radio-transmissor, mas não há descrições de estações de rádio baseadas nessa tecnologia mágica.

      • Mario Marco C Machado disse:

        Existem Trens neste mundo?
        Seria uma boa, criar pontos de transportes ou mesmo portais ativos de carga ou PAC como um Stargate o tempo todo ligado?
        Aí faria mais sentido os grãos serem poupados e as cidades mantidas com suprimentos sadios

  3. Péricles da Cunha Lopes disse:

    Bom dia prezado,
    Acerca da questão do transporte e das rotas comerciais fluviais, e longe de mim querer ofender ou mesmo arranjar uma desculpa para o mapa, mas já pensou que o mapa NÃO revela todos os detalhes de Arton? Que talvez haja rios e riachos que o mapa não revela, considerando que se trata de uma representação? E que talvez, apenas talvez, por se tratar de um jogo, foi feito PROPOSITALMENTE assim para dar liberdade aos jogadores de criar e modificar o que bem entender? E por fim, vc é (ou foi, sei lá!) um dos colaboradores na produção de material oficial (eu acho!), não? Independente, uma vez que domina tanto o assunto, porque não produz para nós, jogadores amantes do sistema (e seguidores de suas postagens), um mapa alternativo? Afinal, conhecimento deve ser partilhado, e você o tem ee grande medida!
    Atenciosamente,
    Péricles Cunha

    • Matheus Ulisses disse:

      Gostei muito da ideia de reformular o mapa, não é como se fosse prejudicar o jogo de ninguém e tem quem goste de um cenário melhor amarrado.

      • Raphael Conterno da Silveira disse:

        Discordo totalmente. O mapa foi feito normalmente, essa desculpa de “dar liberdade” já ta passada,eles não pensaram muito bem quando fizeram ele e isso tem acontecido com muitas outras coisas do Tormenta que já esta ficando feio e chato.

        • Péricles da Cunha Lopes disse:

          É um ponto de vista. Críticas são sempre bem-vindas. Entretanto, reitero meu posicionamento: temos liberdade para editar qualquer material. Fico satisfeito por ter alguma referência (nesse caso o mapa oferecido) para seguir.

  4. Wagner Lague disse:

    Jogo Tormenta com meu atual grupo, e sempre falamos de como o sistema parece ter sido feito com a b#$&@.
    Não tiro o mérito do trio e atualmente o sexteto Tormenta, porém o cenário é o sistema apresenta muitas falhas, o cenário na maioria das vezes de logíca, como você apontou, ou então ele se contradiz, o livro edição revisada diz que itens mágicos se tornaram raros, mas ai cada NPC oficial novo tem uma infinidade deles. Acho que tirando o James K todos os NPCs tem no mínimo 3 itens mágicos.
    Já nas regras muita coisa fica mal explicado ou as classes novas totalmente inapropriadas para PJ. Faça uma campanha com um vassalo e me diz por que o jogador vai querer continuar jogando depois de atingir o nível que se ganha 5000 TO por mês.
    Infelizmente o sistema tem muito feito nas coxas, isso não tira o mérito de todo o trabalho e onde eles conseguiram chegar, mas eu apenas gostaria que o sexteto Tormenta tivesse um maior cuidado ao criar coisas novas, pois hoje me parece que eles apenas pensam em como a ideia é legal, mas não ligam se ela é funcional. “Quem tem que se preocupar com isso são os jogadores e o Mestre” esse parece ser o pensamento deles.

  5. Raphael Conterno da Silveira disse:

    Gostei muito das duas matérias e coloco mais um adendo. Vectoria tem as próprios produtos e povo para se preocupar que tentar transportar os de outros, sem falar nas taxas que deverá ter para tal transporte.

  6. Cezzar Mendina disse:

    Eu também sempre achei um erro o fato dessas grandes cidades não terem mais rios e é bom lembrar que na descrição do Cenário os Navios de comercio costumam mais navegar pelo Rio dos Deuses e muitos reinos Ricos, tais como o Yuden, não tem fronteira com o mar e nem com o principal Rio do mundo.
    Por isso eu refiz vários mapas para fazerem mais sentido. Valkaria por exemplo coloquei 2 rios atravessando a cidade, um que leva até o Rio dos Deuses e outro que liga ela até o oceano( no meu mapa Deheon tem fronteira com o mar.

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