Cânone, sim, engessado, não

Criar mundos é uma experiência que todo mestre de RPG experimenta. Não interessa se você usa um cenário pronto como Tormenta, Forgotten Realms ou Reinos de Ferro, porque a menos que você use aventuras prontas em sua campanha, e seus jogadores sejam os mais bem comportados do mundo para não sair do roteiro dessas aventuras, você irá ter que criar alguma coisa nova em algum ponto. Este artigo é feito pensando em você, criador de mundos, que precisa lidar com algo muito difícil: o cânone.
Cânone, ou canon como é mais conhecido, é tudo aquilo que é pré-estabelecido por um cenário de campanha. Por exemplo, em Reinos de Ferro o Império Khadorano atacou e derrotou Llael em 604~605 DR com a ajuda traiçoeira do então primeiro-ministro da nação invadida. Se na sua mesa o primeiro-ministro for um patriota que tenta desesperadamente conter o avanço khadorano, você não está seguindo o cânone do cenário. Na maior parte das mesas de jogo, o cânone não é muito importante, podendo ser mudado à vontade pelo mestre de jogo. No entanto, muitos jogadores fanáticos pelos cenários de campanha e seus quadrinhos, romances e plots não suportam mudanças em relação ao cânone nas campanhas em que participam.
À primeira vista, pode parecer egoísmo da parte deles, mas é preciso lembrar que sua função como mestre de jogo é garantir que todos os jogadores se divirtam. Se você pretende mestrar uma campanha para um grupo onde há um ou mais jogadores deste tipo, não seria justo da sua parte ignorar o que é divertido para ele(s) porque algo que é mais divertido para você como mestre. Nestes casos, é preciso lidar com o cânone.
Para a maioria dos mestres de jogo, o cânone é visto como um gesso que não os permite utilizar todo o potencial da sua criatividade. Em certa medida eles estão corretos. O cânone estabelece barreiras para o que você pode fazer antes do jogo começar. Em Tormenta, Shivara Sharpblade é a Rainha-Imperatriz do Reinado e regente de Deheon, Yuden e Trebuck. Em Reinos de Ferro, os skorne de Vinter Raelthorne foram rechaçados na Batalha de Corvis, em Forgotten Realms, Drizzt Do’Urden é um elfo negro bondoso e herói aventureiro. Mas algo que muitos mestres não compreendem é que todas as barreiras do cânone caem quando a campanha começa.
Shivara pode ser destronada por uma intriga palaciana liderada pela princesa Rhana. Os skorne podem retornar e tomar Cygnar em nome de Vinter. Drizzt pode ser levado à loucura por algum evento e se tornar tão maligno quanto qualquer elfo negro. A única coisa que você deve dar aos jogadores é a oportunidade de mudar os rumos dos acontecimentos. Por mais fanático pelo cânone que um jogador seja, se ele escolheu alterar alguma coisa, seja apoiando Rhana em sua ascensão ao trono imperial, fazendo parte do exército skorne de Vinter ou assassinando uma amante de Drizzt e o levando à loucura, então ele se desapegará do cânone e se divertirá tanto quanto qualquer outro na mesa de jogo.
Além disso, nem sempre seguir o cânone significa não ter nenhuma influência sobre o cenário inicial com que os jogadores irão lidar na sua campanha. Uma maneira muito astuta de lidar com o cânone é aproveitar o vazio canônico. Cada cenário apresenta descrições com detalhamentos variados, mas todos eles, sem exceção, apresentam vazios que podem ser preenchidos. É impraticável descrever cada personagem, cidade, acidente geográfico, masmorra e oportunidades de aventura presentes no cenário, embora não impossível (Ptolus, de Monte Cook, faz isso e tudo que ele precisou foi um livro de 671 páginas para descrever com todos os detalhes UMA ÚNICA CIDADE).
Por exemplo, digamos que você deseja criar um novo reino em Tormenta. Embora, seguindo a nossa dica inicial, você não possa simplesmente fazer o reino aparecer no mapa, você pode aproveitar os vazios presentes no cenário para criar as bases do que você quer fazer durante a campanha. No suplemento O Reinado d20 é citado que as tribos bárbaras presentes no território que hoje forma o Reinado, Império de Tauron e Liga Independente foram exterminadas ou assimiladas pelos colonizadores. Isto quer dizer que no cânone existem diferentes etnias humanas vivendo nos reinos fundados pelos colonos lamnorianos, mas elas não são descritas em detalhes, são um vazio canônico.
Aí está a sua oportunidade para criação. Inclua uma etnia descendente de bárbaros humanos assimilados durante a colonização séculos atrás, estabeleça uma identidade étnica, uma região onde vivem e são maioria, personagens importantes (heróis e lideranças políticas) e um ponto de tensão que irá desencadear um conflito de independência e você terá todos os ingredientes para que um novo reino surja em Arton durante a sua campanha. Note que você basicamente criou um novo reino e em nenhum momento alterou qualquer coisa do cânone do cenário, na verdade apenas reforçou um aspecto canônico de Arton que não havia sido previamente determinado, e portanto não há nada do que qualquer fã do cenário canônico possa reclamar.
Estas duas dicas principais devem ajudar com 80% dos seus problemas com o cânone enquanto mestre. Os outros 20% são mais complicados. Eles envolvem o que chamo de jogadores leitores. Veja bem, não há nada de errado em ser fanático pelo cânone, como já falei. Todo mundo tem o direito de se divertir como bem entender com um cenário. O problema do jogador leitor é que ele não quer jogar RPG com seu cenário favorito. O nosso hobby, especialmente no gênero de fantasia fantástica, envolve interpretar um personagem heroico que deixa a sua marca no mundo com seus feitos. E não existe um meio de fazer omeletes sem quebrar ovos, um personagem heroico vai alterar o cenário na jornada até o final de uma campanha, e o jogador leitor não consegue lidar com isto. Ele coloca o cenário num pedestal, como uma obra de arte inestimável, e recusa-se a aceitar qualquer alteração pré ou pós inicio de campanha. São estes os mesmos tipos que entram em contato com os autores para tentar saber o que acontece com determinado NPC, porque ele precisa saber para poder continuar sua campanha!
Nestes casos, minha mais honesta indicação é que você retire o jogador da mesa. Não estou sendo cruel, veja bem, o caso é que ele simplesmente não irá verdadeiramente se divertir na sua campanha, não importa o que você faça. Este tipo de jogador só vai se divertir de verdade em campanhas com cenários caseiros. Ele vai ler tudo que o que você escrever para a campanha com um sorriso no rosto, e como você é o autor do “livro” que ele está “lendo”, irá aceitar qualquer coisa que você fizer sem reclamar (no máximo dando um milhão de sugestões de fanboy).
E isto dá conta dos meus pensamentos sobre a questão. E vocês, mestres, tem algo a adicionar?

João Paulo Francisconi

Amante de literatura e boa comida, autor de Cosa Nostra, coautor do Bestiário de Arton e Só Aventuras Volume 3, autor desde 2008 aqui no RPGista. Algumas pessoas me conhecem como Nume.

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1 Resultado

  1. DOUGLAS JOSE NASCIMENTO disse:

    Essa parada de mecher com o canone é muito legal. Eu fiz uma vez, confesso que de começo eu estava relutante e pensando que ia dar muita merda…mas depois, cara, o mundo é meu na minha mesa!!
    E as consequencias foi uma das coisas mais divertidas.
    Um personagem invadiu a bravado do james k(quase morreu, e foi pego como prisioneiro para andar na prancha) e num momento de sorte…uma arma lhe foi dada e as correntes que o prendiam se soltaram. Um retrato no local que ele era mantido prisioneiro falou, e disse “a arma pode matar James k, ou matar você. A escolha é sua”
    E o personagem, um halfling, matou James K com um tiro!
    As consequencias: Badsim se tornou o novo capitão da Bravado, e passou a ser bem cruel, procurando por toda Arton o assassino de Arton.
    Anne, a irma mais nova de James, tentou trazer o irmão de volta, mas não conseguiu. Jurou vingança contra o assassino. Ela caça agora todos tipos de criminosos e até alguns piratas…
    James K está no reino de Odisseia, onde conseguiu um Navio de uma tripulação gigante. Lá, está bem satisfeito com a nova vida pelos mares colossais do plano.

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