O livro começa, como é típico em histórias policiais, com um assassinato, e a investigação do inspetor Tyador Borlú, do Esquadrão de Crimes Extremos da cidade de Bèsz, para solucioná-lo. É claro, no entanto, que o que parecia um caso simples logo se revela bem mais complexo, envolvendo conspirações corporativas e políticas, bem como as complicadas relações de Bèsz com a cidade, podemos dizer, “vizinha”, Ul Qoma. A forma como essa questão é apresentada, aliás, é bastante interessante, sendo sugerida sutilmente nos primeiros capítulos e exposta de fato apenas quando as ligações da vítima com ambas as metrópoles se tornam evidentes; e é então que entendemos do que realmente trata o livro: uma fábula sobre cidades divididas, com ecos d’As Cidades Invisíveis de Calvino, se inspirando em algumas situações históricas, mas exagerando e extrapolando-as na melhor tradição da (boa) literatura fantástica. A própria edição nacional é consciente do fato, aliás, como a leitura dos dados da tiragem na página final bem revela.
Após tantos livros, alguns problemas do Miéville como autor já começam a ficar um pouco evidentes para mim. Em especial, um que já aparecia em Iron Council, o último livro da trilogia de Bas-Lag, que é o pouco envolvimento pessoal de muitos personagens com a trama principal – o próprio protagonista, aqui, é pouco desenvolvido além da sua relação estritamente profissional com o caso que investiga, o que parece torná-lo muitas vezes distante dos acontecimentos, e nos leva a questionar seus interesses e motivações. A Cidade & A Cidade não tem tanto de romance psicológico quanto de metáfora política e social, o que não chega a ser necessariamente um defeito, é claro, mas há de diminuir o interesse de algumas pessoas.
O ritmo do livro também parece um pouco devagar, talvez justamente por esse distanciamento que se nota do personagem principal, com as revelações da investigação andando a passos lentos até os momentos finais, quando se aproxima mais de um filme de ação policial. Novamente, no entanto, este é um problema relativo – a revelação gradual e cuidadosa das pistas, somada ainda à situação peculiar das cidades onde a história se passa, é eficiente, e conseguem mantê-lo interessado na leitura e intrigado a respeito do mistério principal, cuja solução só começa a se desenhar de fato após as últimas reviravoltas.
Por outro lado, é possível notar alguma evolução e amadurecimento em comparação com os romances anteriores, tanto na linguagem do livro, mais acessível e necessitando de menos consultas a dicionários de inglês (ainda que isso se deva um pouco a um certo virtuosismo estético, como bem lembrado na nota final do tradutor Fábio Fernandes), bem como na estrutura da trama, mais redonda e bem-acabada, sem excessos ou grandes experimentalismos. Apesar dos seus elementos de fantasia e surrealismo, A Cidade & A Cidade é um romance policial bem direto e objetivo, que, mesmo confundindo e blefando constantemente sobre a sua resolução, não chega a dar um nó no raciocínio. Apenas a forma como a história constrói certas expectativas só para poder quebrá-las por completo nos capítulos finais já começa a ficar um pouco manjada e previsível para quem leu outros livros do autor.
Para além da óbvia conotação política e todo o aspecto mais formal, ainda, é interessante notar como o livro, da mesma forma que Lugar-Nenhum, do Neil Gaiman, consegue, a partir da fantasia e do surrealismo, nos fazer refletir um pouco sobre a nossa própria realidade. É difícil, após entender como funcinam e se mantêm as fronteiras invisíveis de Bèsz e Ul Qoma, não se pegar pensando um pouco sobre as que existem nas nossas próprias vizinhanças, especialmente nas grandes cidades, e da forma como seletivamente escolhemos não ver ou ouvir pessoas que podem estar bem ao nosso lado, ignorando tudo o que foge aos nossos mundinhos fechados particulares.
Enfim, como saldo final, à parte de todos os poréns, A Cidade & A Cidade é uma obra bastante intrigante e envolvente, capaz de provocar a imaginação e nos fazer refletir longamente após o fim da leitura. Apresenta o amadurecimento de um grande autor, e é certamente uma recomendação. Fica agora a esperança (e o desafio, visto que não será uma tradução fácil) de ver a editora publicar por aqui as outras obras do autor, em especial a trilogia de fantasia weird no mundo de Bas-Lag pela qual ele se tornou mais conhecido lá fora.
A Cidade & A Cidade, de China Miéville.
292 páginas por R$ 45,00.