E se misturar?

Esses dias me ocorreu uma ideia que pode soar absurda para alguns: e se misturarmos Fate System ao Dungeon World? Mais precisamente: e se eu juntar os aspectos de um com os movimentos do outro? Solta essa pedra e vem comigo…

Não sei como os verdadeiros teóricos dividem a estrutura mecânica dos jogos de RPG, mas eu enxergo uma dicotomia: estrutura de personagens e resolução de conflito. Na primeira, entra a descrição de personagens jogadores (seja com atributos quantitativos ou qualitativos) e a descrição de NPCs (que pode ser igual aos PJs ou destacando alguns detalhes), além de mecânicas que orbitem em torno disso. Na segunda (a resolução de conflitos) entram combates, interações sociais (debate, persuasão), testes (perícias, resolução de problemas) e o resto. Às vezes existe uma mecânica de resolução unificada, às vezes existem mecanismos variados (mas isso é discussão para outro momento).

Depois dessa visão fria, talvez fique mais fácil separar as regras dos seus jogos em blocos de peças. E qual a importância disso? Deixo a resposta para todos que já desmontaram rádios e brinquedos para ver como funcionavam.

No Dungeon World, o personagem é feito dos mesmos atributos numéricos que o D&D carrega há gerações (e funciona bem assim, concordo). Mas, e se fosse diferente? E se, ao invés de valores quantitativos (atributos fixos diferenciados por números), tivéssemos valores qualitativos (palavras e frases com bônus iguais, mas aplicações diferentes). Seriam elementos mais subjetivos e passíveis à interpretação de cada um, admito. Mas afinal, esse é ou não é um jogo de interpretação? E é aqui que entram os aspectos, o que há de mais precioso no sistema Fate. Aqui a definição do manual do sistema (traduzido pelo Jaime Rangel):

Um aspecto é uma palavra ou frase que descreve algo especial sobre uma pessoa, lugar, objeto, situação ou grupo. Quase tudo pode ter aspectos. Alguém pode ser A Maior Espadachim do Mar de Nuvens. Uma sala pode estar Em Chamas após você derrubar um lampião. Pode estar Apavorado após um encontro de viagem no tempo com um dinossauro. Aspectos permitem mudar a estória de acordo com as tendências, habilidades ou problemas de seu personagem.

Isso mesmo: não só os personagens podem ter aspectos, como também os lugares e as próprias cenas (até os ferimentos são um tipo de aspecto). Os aspectos podem ser invocados ou forçados. Invocar é uma coisa boa, trazendo benefícios como ganhar +2 na rolagem de dados ou relançar os dados, ambos custando 1 ponto de destino (podendo usar gratuitamente algumas vezes). Já forçar o aspecto é uma coisa ruim (pra quem está sendo forçado): algum evento relacionado acontece ou o personagem pode ser obrigado a tomar uma decisão. Se você aceitar ser forçado, ganha 1 ponto de destino. Para recusar é preciso pagar 1 ponto.

E porque não parar por aqui e simplesmente jogar Fate? Bem, porque o sistema de movimentos do Dungeon World é incrível! (Sossega. Eu sei que eles vieram do Apocalypse World). O manual do Dungeon World fala assim (traduzido e publicado pelo pessoal da Secular Games):

A unidade básica das regras do Dungeon World é o movimento. (…) Quando um jogador descreve uma ação de seu personagem que serve como gatilho para disparar um movimento, esse movimento deve ocorrer e suas regras devem ser aplicadas.

Qualquer ação do personagem que envolva algum tipo de risco ou desafio é um movimento. Ele funciona assim: dois D6 são lançados e somados (mais bônus de atributos) e as consequências sempre seguem essa regra:

10 ou mais: você é bem-sucedido com poucos problemas. 7 a 9: você é bem-sucedido, mas com alguma complicação ou problema. 6 ou menos: o mestre diz o que acontece e você marca XP.

No caso do movimento Matar & Pilhar, com 10+ você causa dano e não recebe dano (opcionalmente, pode causar dano extra e receber dano normal do oponente). Com 7-9 você causa e recebe dano normal. Com 6- você não causa, apenas recebe dano do oponente. Qualquer coisa que seu personagem for fazer segue essa mecânica básica. Outros movimentos básicos são Disparar, Desafiar o Perigo, Falar Difícil, Discernir Realidades, Negociar e até coisas como Último Suspiro, Empreender uma Jornada Perigosa, Avançar de Nível e Farrear. Isso mesmo: até coisas como morrer e subir de nível são vistas como movimentos.

Aliás, outra coisa incrível no DW: apenas jogadores lançam dados. Eles decidem o que fazer, lançam dados e os movimentos dizem o resultado da ação. Sim, eu sei que o Fate já tem seus quatro tipos básicos de ações (Superar, Criar Vantagem, Atacar e Defender), mas por que não usar movimentos do DW e dar um sabor especial?

Mexendo o caldo

Enfim, aspectos são a coisa mais linda que um personagem pode ter na ficha e movimentos são mecanicamente incríveis. Por isso, vamos usar os dois juntos! É agora que o bicho pega. Vamos ser honestos: uma adaptação completa exigiria muito mais do que uma post, mas dá pra gente esboçar alguma coisa.

Eu começaria pelos personagens: seriam construídos com aspectos, como no Fate. Claro que permaneceriam os vínculos do Dungeon World (eles também são muito bons) e, claro, os movimentos de cada classe. Opcionalmente, poderíamos incluir: A) as perícias do Fate Básico; B) as abordagens do Fate Acelerado; C) características de qualquer sistema (pode ser do DW mesmo).

Já que comecei essa bagunça toda por causa dos aspectos e da liberdade que eles dão, vou sugerir algo que vai arrepiar os cabelos dos fateístas: esqueça perícias, abordagens e características. Deixe tudo com os aspectos. Ele é perito em algo? É bom em fazer as coisas de alguma maneira? Tem um atributo físico/social/mental relevante? Descreva isso com aspectos.

Se o aspecto for relevante (e o PJ tiver pontos de destino pra gastar), some +2 à rolagem. Se o NPC tiver um aspecto relevante (e o mestre tiver pontos de destino), subtraia -2 da rolagem. Como o valor médio na rolagem somada de 2D6 é 7, somar +2 deixa o resultado perto do 9, que ainda fica entre os resultados medianos dos movimentos. Outra regra pessoal com o objetivo de angariar inimigos: pontos de destino poderiam ser gastos sem estar ligados a aspetos, mas sempre 1 por rolagem (além dos pontos gastos com aspectos) e seu uso daria um bônus de +1 à rolagem (vindo do mestre, seria um valor negativo, representando uma força contrária à intenção do PJ). Assim, teríamos bônus oscilando entre +1 e +3 (sem contar os redutores ocasionais).

Sobre brigas e danos, acho que o mais simples é continuar com os dados de dano do DW (D4, D6, D8 etc., conforme a classe). Quanto aos pontos de vida, some o valor base da classe ao resultado de 3D6 (ao invés de somar a Constituição). Claro que isso tudo é uma visão bem superficial e outras adaptações podem ser necessárias (ou interessantes, já que alguns podem ver tudo aqui como desnecessário).

Imagino que isso não seja o suficiente, mas dá pra pra criar uma ideia e serve de base para uma possível experimentação de quem se interessar. Mas o que vocês acham? Seria jogável? E quais outras misturas seriam possíveis? Lady Blackbird com 3D&T? Shotgun Diaries com Storytelling?

A discussão continua nos comentários.

Imagem: Warrior, por Chris Ng Fhze Yang.

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6 Resultados

  1. Douglas disse:

    Poxa. Gostei bastante da ideia de misturar sistema. Eu não li sobre esse Fate, vou procurar ver por que me interessou pelo o que você disse.
    Já li shotgun diaries, e gostei muito também. Acho que o shotgun se parece bem com isso dos aspectos.

    • Ásbel disse:

      Valeu, Douglas!
      O Shotgun Diaries é genial em sua simplicidade. Também gostei muito!
      A mecânica é bem diferente do lance de aspecto, mas se assemelha na coisa do tipo de personagem do Shotgun (corredor, forte, esperto) ser um conceito que precisa ser entendido e ponderado a cada situação.
      Ambas as mecânicas são aquela coisa de “atributos qualitativos”. =)
      Nota curiosa: o autor do Shotgun Diaries é o John Wick, que também é autor do Houses of Blooded e do Blood & Honor, ambos usando bem a mecânica de aspectos. E tem resenha ótimas dos dois nos arquivos aqui do RPGista.
      Use a busca e aproveite!
      (E confira mais do Fate nos links de rodapé do post).
      Valeu!

  2. Bob disse:

    Eu acho o FATE sensacional, a única coisa que não gosto dele é a evolução de personagens.
    O DW é sensacional também, a única coisa que não gosto muito dele é como medir o desafio das ameaças.
    Lady Blackbird é muito bom, mas acho que o limite do desafio pode atrapalhar um pouco se o grupo quiser algo perto do épico.
    Acho que se pegar um pouco de cada dá para fazer algo inesquecível, ou muito quebrado. =P

    • Ásbel disse:

      Níveis de desafios sempre precisam de uma curadoria do mestre. Seja no DW ou no D&D, não dá pra confiar só nos livros…
      Fiquei curioso sobre o motivo de você não gostar da evolução de personagem no Fate. Seria fata dos pontos de experiência?
      Acho que a evolução do fate é um pouco mais horizontal, já que algumas coisas não são feitas de números que podem ir aumentando, mas não acho que seja um problema.
      Mas acho demais o lance do DW de ganhar XP quando se falha nos testes.
      Valeu!

  3. Jaime Rangel disse:

    Já me peguei pensando em Fate + Dungeon Worlds. Os modelos de Stunts/Proezas do Fate Têm semelhanças aos Movimentos do DW e acho muito interessante os gatilhos das ações, sem quebrar tudo em rodadas, fluindo mais naturalmente, acho.
    Obrigado por usar minha tradução como referência.
    Até.

  4. Também penso em fazer uma adaptação entre os dois, mas nua abordagem diferente. O que me incomoda em DW é a 1) inexistência de perícias (todos os movimentos são baseados em atributos); 2) a rigidez das classes.
    Numa adaptação, que pretendo fazer inclusive, eu iria preservar os seguintes elementos de cada abordagem.
    * Dungeon World: sistema de experiência e nível; regra geral das rolagens (separando os resultados em três categorias); sistema de danos. Por outro lado, eu removeria completamente os atributos e os converteria em perícias.
    * Fate: sistema de perícias, stunts e aspectos. Os stunts poderia equivaler aos movimentos básicos e avançados de DW. Por exemplo, matar & pilhar poderia ser um stunt para a perícia de luta corpo a corpo, por exemplo. O movimento ataque pelas costas poderia ser stunt para a perícia furtividade. Etc etc.
    Se assim fosse feito, acredito que os personagens poderiam ser muito customizáveis em vez de cair nessa coisa de classe. Afinal de contas, eu gosto muito da mecânica de DW, mas me incomoda que eu não possa criar algo totalmente novo fora dos padrões.

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