Cuervos & Cabrones

Perto do fim do ano, eu fiz um desafio pessoal: criar um RPG mexicano, cheio de estereótipos e brincando com mecânicas de jogos indie (ou seja, longe do padrão D&D. Não por preconceito, mas pelo desafio em si).

Aviso: é um post meio longo, mas pode ser interessante pra quem curte game design. Se esse não é o seu caso, é só fazer o download jogo e depois comentar pra gente o que achou.

Bem antes de lançar o desafio, eu já tinha divagado (sem chegar em lugar nenhum) em como seria uma regra de jogo que usasse dados da mesma forma que o “mexicano”, uma variante de dados mentirosos (liar’s dice) que usa três dados fazendo combinações entre si (algumas regras podem ensinar com dois dados, mas eu conhecia com três e era essa que eu queria usar).

Em suma, o mexicano é assim: o jogador lança três dados e anuncia o resultado do maior para o menor (e.g. 4-2-2). Se o resultado for uma trinca, ganha dos demais (em ordem crescente). Por fim, o melhor resultado é o “mexicano”, capaz de ganhar de todos os demais. Ele é formado pela sequência 1-2-3. Na hora do jogo, uma pessoa lança os dados e anuncia o resultado. Se os demais aceitarem, passa-se o copo para o próximo, que tem o dever de tirar um resultado igual ou melhor que o anterior. O jogo segue até que alguém acuse o jogador de mentiroso. Se for verdade, o acusador perde. Se for mentira, quem perde é quem havia jogado. Em geral, ele é usado como drink game (com tequila, de preferencia), onde o perdedor bebe um shot (aquele copinho malandro).

Obviamente, usar o jogo de dados acima fazia parte do desafio, mas eu não tinha ideia de onde começar. Isso até eu começar a responder as três perguntas. Quais perguntas? Essas: “sobre o que é seu jogo?”, “como seu jogo garante que isso aconteça?” e “que comportamentos seu jogo recompensa?”. No começo eu nem tinha consciência que estava respondendo alguma coisa. Tudo que eu tinha era um documento no Google Docs cheio de anotações e ideias. Mas, quando a coisa começou a tomar forma, eu sabia que a primeira pergunta estava sendo respondida.

Uma outra preocupação minha (e que acabou se tornando a pergunta zero para todo RPG) era “por que alguém se daria ao trabalho de jogar essa bosta?”. Afinal de contas, que recompensa eu poderia dar para que alguém reunisse amigos para jogar algo com esse tema e com essas regras, ao invés de algo que eles já estejam acostumados? Bom, não seria com um jogo experimental que eu faria alguém largar mão do Pathfinder, Vampiro ou 3D&T, mas eu poderia tentar fazer algo que essa pessoa se interessasse em experimentar caso um dia quisesse relaxar depois de uma campanha exaustiva. É uma boa, mas como fazer isso? Porque imaginar personagens de bigodes e sombreros enquanto joga três dados buscando combinações bizarras poderia ser interessante?

Eu acredito que as pessoas gostam de desafios, gostam de jogos e gostam de criar coisas. E se alguém joga RPG com vontade, provavelmente está procurando algo nesse caminho. Essa é uma crença meio babaca; otimista demais para alguns, mas a gente precisa se firmar em algo. Com base nisso, eu pensei em inserir um sistemas de apostas e deixar a coisa mais interessante. Mas o que seria apostado? Bom… por que não apostar a própria coragem e gana dos personagens?

O Sistema

Vamos voltar um pouco na linha do tempo. Em paralelo com o sistema de conflitos, eu estava pensando na construção da ficha do personagem. Tenho pra mim que esse é o âmago dos sistemas de RPG: o que a ficha diz e como o sistema usa isso para resolver os problemas do caminho. Se tem outra coisa nessa equação, me avisem, por que no fundo eu sou isso: um desavisado. A ideia inicial era construir os personagens com características que falassem de seus atributos físicos, sua malícia mental e coisas desse tipo que eu já havia flertado antes. Mas aí, enquanto respondia à pergunta zero (aquela sobre por que jogar), eu ia me perguntando se isso era a melhor maneira de construir um personagem ou se era mera preguiça mental (o que não deixa de ser algo bom). Foi aí que eu rompi de vez no desafio com os sistemas cheios de características numéricas (você sabe de quem eu tô falando) e comecei a olhar para coisas como Lady Blackbird, Houses of Blooded e PDQ# (Shido, obrigado pelas milhões de resenhas. Se você soubesse o quanto elas abrem nossa cabeça, estaria fazendo outras).

Quando a ideia ainda era encher o personagem de características, eles influenciariam o resultado das rolagens permitindo relançamentos de um ou mais dados. Isso era uma coisa legal pra fazer ficha e rolagem conversarem, só que não podia ser tudo. Uma característica que eu queria muito criar era uma chamada “culhões” (ou “cojones“, em espanhol), que resumiria a bravura e determinação do personagem. Se você leu esse texto sem pular muitos parágrafos (duvido!), já deve ter entendido aonde isso vai dar: essa seria a única característica numérica que ficaria no jogo e ela seria mais algo como “PVs” ou “PMs”, sem uma pontuação fixa como teria algo como “força”, “destreza” ou “coragem”. Ela seria ganha em jogo e apostada em conflitos. Outro uso eventual dos culhões seria como pontos de ação e similares que a gente vê por aí.

Nota: No meio do processo eu tropecei e acabei descobrindo o Dust & Devils, mas eu decidi não ler nada sobre ele enquanto não terminasse todo o jogo. Assim eu fugiria de influências e evitaria dar respostas iguais às mesmas perguntas. Ou seja, não há nenhuma relação entre a característica “culhões” dos dois jogos. Eu pensei nela (lá no começo) enquanto selecionava termos em espanhol que remetiam ao México (como “cojones” e “cabrón”). Quando vi que tinham usado esse mesmo nome na edição brasileira do Dust & Devils, eu fiquei meio triste, mas aí eu perdoei a Redbox e segui em frente (aliás, eles usaram o termo como uma adaptação inteligente do original “guts”. Justo).

Nota 2: Outra semelhança é que ele também usa um sistema de apostas e a combinação de valores de elementos aleatórios (no caso, ele usa o pôquer com cartas). Mas eu já tinha desenvolvido a ideia quando descobri e nem ia voltar a trás, até porque esse método de resolução já existia antes de qualquer um dos dois. Mais uma vez eu perdoei o RPG western e segui em frente.

Ainda sobre os culhões, uma coisa que me incomodava era a “economia” deles (o balanço entre a entrada e a saída deles). Quer dizer, acho que o jogo dá várias maneiras de tirá-los, mas um medo meu era um jogador ganhar os culhões apostados em um conflito, usá-los para ganhar mais, mais, mais e entrar num ciclo vicioso de acumulo de culhões sem fim. Inicialmente, achei que não seria problema e que ficaria a cargo do narrador do jogo o equilíbrio dos pontos dos jogadores, mas depois achei mais seguro aliviar ele desse peso. Assim, estipulei uma jogada aleatória para a determinação de um valor máximo.

Eventualmente esse valor pode ser aumentado gastando uma quantidade de culhões igual ao valor máximo atual. Essa é a única maneira de evoluir no jogo, que não tem pontos de experiência. Curiosamente, essa foi a última coisa adicionada ao jogo  e sem isso nem haveria um jeito de melhorar o personagem. Pessoalmente, não acho que faria falta em um jogo projetado para aventuras de poucas sessões, mas está lá, caso se faça necessário.

Na continuação da construção do personagem, eu pensei em outras duas características (num sentido mais amplo do termo): a inclinação, que daria uma ideia da personalidade dele e recompensaria (com culhões) o jogador que a seguisse, e a natureza, que seria um jeito exclusivo do personagem de gastar culhões para melhorar seu resultado nos dados (criando aqui um conflito entre apostar mais ou guardar pra usar a natureza. Acho que esse tipo de administração tática pode ser interessante). Pessoalmente, não sei se o balanço de custos entre as naturezas poderia ser melhor, mas não acho que esteja tão desequilibrado a ponto de atrapalhar. Dissecando o jogo, a natureza é a boa e velha técnica do personagem, funcionando como os “talentos” no D&D, “movimentos” no Dungeon World ou “vantagens” no 3D&T. Já a inclinação tenta responder à terceira pergunta (quarto parágrafo), dando recompensas aos jogadores por seguirem determinados comportamentos, bem no estilo das “chaves” do Lady Blackbird.

Pra fechar, tomei emprestada a ideia de ”vínculos” do Dungeon World, porque acho que isso ajuda a fortalecer o enredo e já dá alguns ganchos pro mestre começar a trabalhar. Também peguei emprestado de alguns jogos a ideia de “condições” (como Lady Blackbird ou Mouse Guard RPG), embora eu tenha usado apenas condições físicas e as tratando como degrais para a morte; ou seja funciona como pontos de vida, mas com nomes ao invés de números, e com a mesma quantidade de níveis pra todo mundo.
Basicamente, o sistema ficou assim. Aí o resto foi dar dar uma encorpada para vender melhor a ambientação: não é um faroeste mexicano, mas também não deixa de ser. Por isso eu achei importante dar uma perfumada no material. Criei uma lista de inimigos com base nos estereótipos que a gente tem aqui do México (não se preocupe, o chupa-cabras está lá). Foi legal essa parte, porque me obrigou a criar umas naturezas especiais para cada um. Também montei uma lista de ideias básicas para aventuras (só algumas linhas jogando coisas no ar). No fim, não sei se era o sistema ou era eu, mas estava achando tudo com cara de western latino  e acabei incluindo uma lista de cenários alternativos pra usar o sistema.

Depois de fechar o texto, tive a ideia brilhante [ironia ON] de fazer um PDF. Dica: se fizerem algo legal e quiserem distribuir, compartilhem o link do texto no Google Docs. Mas lá fui eu diagramar tudo (com direito a regular espaçamentos entre linhas, kerning e todas essas coisas assustadoras). Aí ficaram uns espaços vazios e eu me perguntei “por quê não fazer uma arte pra colocar aqui?”. Outro erro. Depois de tudo pronto, eu mandei pra galera do blog e o Brueh me incentivou a ser mais criativo na ficha de personagem. Sério, tava pronto! Fazer uma nova? Mas, na boa: valeu a pena. Uma dica, garotos: aprendam a ouvir as pessoas. No fim, é você quem ganha.

PS.: Eu me pergunto como a galera consegue trabalhar, estudar, namorar, viajar e ainda participar desses concursos de montar um RPG em uma semana. O meu demorou uns 20 dias, desde as primeiras anotações até conseguir fechar o arquivo. Sério, quem consegue está de parabéns.

Finalizando

No fim, ele não vai se tornar o seu novo sistema predileto e nem é a pretensão, mas acho que pode ser jogável e relaxar seu grupo de monte de táticas e miniaturas do D&D ou desses poderes de luta infinitos da sua campanha de Dragon Ball pra 3D&T que eu sei que vocês ainda jogam.

Faz assim: experimente uma vez e volta aqui pra dizer como foi. Vai fazer vocês se divertirem um dia com algo diferente e vai servir como playtest pra mim. No fim, todo mundo ganha. E se você só quiser ler e comentar suas impressões, também vai ser muito bem-vindo. Pra conhecer e jogar, você acha ele aqui:

http://j.mp/cuervos (visualização e download)

Pronto. É isso. O desafio foi cumprido e foi extremamente divertido e enriquecedor pra mim. E, depois de reclamar e xingar, indico esse tipo de coisa pra todo mundo que tem interesse. Agora, qual será o próximo?

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10 Resultados

  1. Victor disse:

    Honestamente, achei muito legal a ideia. Novas ideias merecem sempre ser aplaudidas. Pretendo testar, depois eu volto e digo como foi xD

  2. Alexandre disse:

    Eu li e conceitualmente achei sensacional. Fiquei REALMENTE com vontade de jogar.
    Eu faria uma campanha no méxico contemporâneo. Só não sei se seria mentiroso como um Era uma Vez no México ou sujo e perverso como Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia, que é um filme sensacional. Aliás, se você olhar bem, só nos Estados Unidos o “Alfredo Garcia” é detonado, o que mostra muito bem o quanto o filme é bom. 😉

    • Ásbel disse:

      Era Uma Vez no México é sensacional e está por dentro da mistureba de referências.
      Esse segundo eu não conheço, mas já tá entrando na minha lista!
      E, se jogar, me avise como foi…

  3. Vmascarado disse:

    Cara… Simplesmente fodástico. Se eu pudesse roubar sua ideia antes, estaria orgulhoso de mim agora. hehehe.
    Muito bom! Muito bom mesmo. Ansioso pra testar aqui. Mecânica dialogando com a temática, isso pra mim é a chave de um bom jogo, e foi exatamente o q vc fez.
    Abraço.

  4. Vmascarado disse:

    Esclarece uma dúvida: no capítulo “inimigos” não entendi as referências dos antagonistas como “Lobisomem culhões: 1 dado +2”. O que significa?

    • Ásbel disse:

      Valeu, V!
      Que bom que gostou.
      Testa sim, cara. E volta aqui pra falar como foi! 😀
      Sobre os culhões dos inimigos: é a reserva deles para apostas e usos em manobras.
      Mas o narrador pode fazer como achar melhor pra aventura.

  5. Alexandre disse:

    Eu chamaria de Cojones ao invés de Culhões. 🙂

    • Ásbel disse:

      Oi, Alexandre.
      Obrigado!
      Inicialmente seria assim. Tem até uma menção no início do tópico dele no PDF. Só acabei evitando pra facilitar a leitura.
      Mas a ideia é que o narrador usar esses termos em espanhol na mesa, pra incrementar a ambientação e deixar as coisas mais divertidas.

  6. Cezar disse:

    Muito interessante ter esse insight no processo de criação de um sistema+cenário! Parabéns! E, desculpe-me, quem é Shido e onde encontro suas milhões de resenhas?

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