Shadowrun é certamente um dos cenários mais queridos dos RPGs. A sua mistura caótica de cyberpunk e fantasia é bastante única, e certamente muito divertida. A segunda edição do jogo chegou mesmo a ser publicada no Brasil pela Ediouro, na época do famoso “boom do RPG” do meio dos anos 1990, e depois reeditada pela Devir, de forma que mesmo por aqui ele possui uma comunidade razoável de fãs. E ele é conhecido também por alguns games clássicos do Super Nintendo e Mega Drive, além pelo menos de um mais recente para a última geração de consoles.
A seguir, em todo caso, está uma pequena adaptação dele para o 3D&T Alpha. Não se trata de uma conversão aprofundada de todos os pormenores e elementos do jogo, o que seria grande demais para um mero artigo de blog; ao invés disso, fiz apenas uma apresentação geral do cenário, algumas diretrizes básicas de como usá-lo no sistema, e um pequeno conjunto de arquétipos que você pode usar para criar personagens e NPCs.
Bem-vindo ao Sexto Mundo
“O mundo mudou. Alguns dizem que despertou.”
Shadowrun tem como cenário o nosso próprio mundo, em meados do século XXI – a segunda edição lançada no Brasil era ambientada na Seattle do ano 2053, e a atual quarta edição, em 2072. Nas décadas até lá, a tecnologia da informação avançou a níveis extremos, ainda mais que os atuais, e as megacorporações multinacionais de fato se tornaram maiores que os governos, que praticamente não possuem mais poderes reais. É, enfim, o seu tradicional cenário cyberpunk oitentista: uma distopia urbana liberal, onde a lei só existe para os tolos o bastante para se deixar pegar por ela, e a cultura das ruas sobrevive entre a marginalidade e a leniência dos verdadeiros poderes.
Muito além disso, no entanto, em Shadowrun vivemos em um mundo após o Despertar – um evento místico ocorrido no ano 2012 que trouxe a magia de volta ao mundo. De uma hora para outra, ritos indígenas, rituais de bruxaria e outros que eram vistos com desdém por cientistas e céticos voltaram a funcionar com a força de séculos atrás. Criaturas que já eram tidas como extintas ou imaginárias, como dragões, sereias e unicórnios, voltaram a habitar os céus, oceanos e regiões selvagens. Mais do que isso, ainda, as próprias pessoas começaram a mudar: um surto de metamorfoses espontâneas começou por volta de 2021, fazendo com que pessoas totalmente normais no dia anterior subitamente acordassem como elfos, anões, orcs e trolls.
O resultado, é claro, foram décadas de caos e desordem até que a sociedade voltasse a se reorganizar dentro das novas condições. Nações se uniram em países mais fortes para tentar sobreviver, e outras se dividiram em dezenas de Estados menores – os Estados Unidos e Canadá, por exemplo, se tornaram nada menos do que treze Estados independentes entre si, de nações indígenas renascidas até os herdeiros políticos dos países atuais.
O Sexto Mundo, enfim, é um mundo de grandes oportunidades, pelo menos para aqueles que souberem reconhecê-las e aproveitá-las. Entre estes estão os famigerados agentes das sombras, ou shadowrunners – habitantes do submundo urbano, que vivem nas sombras da sociedade e realizam as missões que as megacorporações não podem realizar abertamente, como espionagem industrial, roubo de dados e queima de arquivo. Os personagens dos jogadores, geralmente.
Se quiser detalhes mais aprofundados sobre o mundo de Shadowrun, você pode ir atrás em sebos e afins dos livros da segunda edição que foram lançados no Brasil pela Ediouro e a Devir, que inclui também uma trilogia de romances bem bacanas ambientandos no cenário. O Douglas do d3System também disponibilizou tempos atrás o PDF Shadowrun Brasil, escrito por ele, que ambienta a nossa terra brasilis no Sexto Mundo. E, bem, qualquer um acostumado com a temática e histórias cyberpunks não deve ter muita dificuldade de imaginar os pormenores mais específicos a partir daqui, apenas adicionando os elementos particulares que tornaram Shadowrun um dos RPGs mais queridos pelos fãs.
Shadowrun em 3D&T
Pode não parecer para os puristas, mas Shadowrun é um cenário incrivelmente funcional em 3D&T. Temos um ambiente caótico, personagens com capacidades sobre-humanas, poderes sobrenaturais… Há até raças exóticas em profusão, de forma que você pode fazer a festa com as vantagens únicas do Manual 3D&T Alpha, diferente da maioria dos cenários do mesmo gênero. Apenas esqueça os preconceitos dos mais chatos e se divirta. A seguir, em todo caso, faço alguns comentários mais específicos a respeito, falando de alguns elementos importantes dele que talvez não tenham uma adaptação tão óbvia para o sistema.
Em primeiro lugar, os implantes cibernéticos, de maneira geral, podem ser incluídos diretamente nas características e vantagens do personagem. 3D&T já assume que qualquer personagem é normalmente acima da média – uma Força 1, por exemplo, já é o máximo possível para um humano “comum”, e de 2 para cima você já pode considerá-la como sobre-humana -, de forma que os implantes acabam sendo apenas a sua desculpa descritiva padrão para que ele esteja tão acima dos humanos normais. Se preferir, no entanto, você também pode adquiri-los como objetos mágicos – em termos práticos, não há uma diferença tão grande entre uma espada mágica que concede um bônus de Força +1 e um braço cibernético que faça a mesma coisa. O blog Non Plus RPG também apresentou tempos atrás, na época da Iniciativa 3D&T Alpha, uma grande lista de implantes cibernéticos variados, que você pode aproveitar nos seus jogos se quiser.
Claro, encher o seu corpo de aço e cromo traz conseqüências, especialmente se você também pretende desenvolver suas habilidades místicas. De maneira geral, um personagem pode ter até 25% do seu corpo transformado em máquina e ainda ser considerado humano (ou meta-humano) de alguma forma. Daí até 75%, ele será considerado um Ciborgue, e deve possuir a vantagem única de mesmo nome; e acima disso ele será considerado praticamente um construto completo, equivalente a um Andróide ou Mecha. Novamente, no entanto, estas definições são apenas descritivas, não há uma regra padrão pra decidir quando cada nível é atingido, e cabe ao jogador decidir se quer ou não adquirir as vantagens correspondentes ao criar o seu personagem.
Como regra especial apenas para Shadowrun, você pode permitir que personagens que já possuam outra vantagem única, como elfos ou anões, sejam Ciborgues, mas não Andróides nem Mechas – quando a quantidade de implantes mecânicos chega num nível tão elevado, qualquer vestígio que o personagem possuísse da sua raça original simplesmente deixa de fazer diferença. Você também pode permitir que Ciborgues (mas, novamente, não Andróides ou Mechas) adquiram vantagens mágicas, mas qualquer feitiço que tentarem conjurar custará o dobro de PMs para ser usado.
Por fim, nenhum cenário cyberpunk seria completo sem regras para tecnautas e a famigerada matriz. Em 3D&T, a forma mais simples de fazer isso é através das regras para Comando de Aliado: você pode considerar que um teclado de acesso à matriz não é de todo diferente de um robô ou outra máquina qualquer a ser comandada, permitindo a você invadir os mundos virtuais onde as grandes corporações guardam suas informações mais valiosas. Você deve construir, assim, a sua persona virtual seguindo as regras normais da vantagem Aliado, definindo características e vantagens equivalentes aos seus programas de invasão e proteção contra GELOs, e usá-la toda vez que precisar invadir uma rede corporativa em uma missão.
Tais características, no entanto, nunca serão usadas no mundo físico, assim como também não é possível interagir com os mundos virtuais sem algum tipo de interface de acesso – mais ou menos como se fosse uma escala de poder à parte, como eu sugeri em um artigo a respeito no site Defensores de Tóquio tempos atrás. Você também precisa ter a perícia Máquinas ou a especialização Computação para “pilotar” adequadamente uma interface de acesso, da mesma forma como um piloto de mechas precisaria de Pilotagem.
Ao invés de uma dúzia de kits de personagem, preferi apresentar a seguir apenas alguns arquétipos simples inspirados no cenário do jogo. Eles são, basicamente, modelos prontos com pontuação completa, que você pode usar como base se quiser seguir o conceito – não é necessário usar a ficha exatamente como está ali, mas ela lhe dá um ponto de partida, de forma que você pode trocar valores de características e adicionar vantagens e desvantagens como quiser.
Todos os arquétipos a seguir foram feitos com 12 pontos de personagem.
Samurai Urbano
Função: tanque.
F4 H2 R2 A2 PdF3 30 PVs 10 PMs
Vantagens: Adaptador, PVs Extras x2.
Desvantagens: Ciborgue (cérebro orgânico); Assombrado (por curto-circuitos), Monstruoso.
Mais máquina do que homem, o samurai urbano é o predador supremo das ruas. Um verdadeiro arsenal de cromo, aço e balas, ninguém se iguala a ele quando o assunto é explodir, mutilar e eliminar coisas. Magia e sutileza são para os fracos; o verdadeiro guerreiro deve ser forte e resistente o suficiente para sobreviver na selva urbana do século XXI – ao menos quando suas conexões de dados não falham…
Iniciado Somático
Função: atacante.
F2 (contusão) H4 R2 A1 PdF2 (perfuração) 10 PVs 10 PMs
Vantagens: Ataque Especial (Força), Ataque Múltiplo.
Desvantagens: Código de Honra do Combate.
O iniciado somático é dedicado ao aprimoramento do corpo e suas capacidades através de concentração e disciplina. É um artista marcial urbano, mesclando habilidades quase místicas cuidadosamente lapidadas com a mais moderna tecnologia de armamentos que o século XXI pode oferecer. Uma máquina de matar assustadora, porém honrada.
Homem da Tribo
Função: atacante.
F1 (corte) H2 R2 A1 PdF2 (perfuração) 10 PVs 10 PMs
Vantagens: Ataque Especial (PdF – Penetrante, Preciso)
Desvantagens: Código de Honra do Caçador
Perícias: Sobrevivência
O homem da tribo é o membro de uma das muitas tribos espalhadas pela Seattle do século XXI, muitas vezes de meta-humanos. Sua ligação com a natureza é quase anacrônica no Sexto Mundo, mas também lhe garante a calma e a serenidade de um animal selvagem atrás da caça na hora de agir.
Tecnauta
Função: baluarte.
F0 H3 R1 A2 PdF2 (perfuração) 5 PVs 5 PMs
Vantagens: Aliado (teclado de acesso à matriz; +2 pontos).
Desvantagens: Ciborgue (cérebro orgânico)
Perícias: Máquinas.
Persona na matriz (Aliado): F2 H0 R3 A2 PdF0 15 PVs 15 PMs; Memória Expandida, Poder Oculto (programas de invasão diversos), Sentidos Especiais (todos).
O tecnauta é o descendente direto dos piratas de dados do século XX – um cowboy virutal, vivendo na fronteira da matriz das grandes empresas e contrabandeando informações valiosas entre elas. Pode não ser o mais preparado para enfrentar as durezas do mundo físico, mas nenhum grupo de agentes das sombras ousa sair para uma missão sem ter um deles entre os seus.
Fusor
Função: baluarte.
F0 H3 R2 A1 PdF2 (perfuração) 10 PVs 10 PMs
Vantagens: Aliado (furgão blindado; +1 ponto), Ligação Natural
Desvantagens: Ciborgue (cérebro orgânico)
Perícias: Máquinas
Furgão blindado (Aliado): F3 H0 R4 A3 PdF0 20 PVs 20 PMs; Aceleração.
O fusor é um tipo especial de tecnauta, que troca as suas sensações naturais por uma ligação de dados e assim se funde por completo com uma máquina, em geral um veículo ou painel de segurança. Ele sente as rotações dos motores no lugar de batidas do coração, e realiza injeções de gasolina no lugar de adrenalina. É aquele a quem os corredores das sombras irão recorrer quando precisarem fugir rapidamente de uma instalação industrial após roubarem dados confidenciais.
Bruxo Urbano
Função: dominante.
F0 H3 R2 A1 PdF0 10 PVs 30 PMs
Vantagens: Alquimista, Elementarista (escolha um elemento), Magia Elemental, Magia Irresistível 1, PMs Extrasx2.
Desvantagens: Fetiche.
No século XXI, a magia voltou ao mundo – e de uma maneira drástica e irreversível. Os usuários de magia verdadeira podem ser ainda poucos, mas são muito bem conhecidos e frequentemente requisitados para serviços pelas megaempresas, seja abertamente ou nas sombras. O bruxo é um usuário de magia que segue os princípios herméticos de conjuração dos elementos, usando seus poderes para fins próprios e muitas vezes inescrupulosos.
Xamã Urbano
Função: baluarte ou dominante.
F0 H2 R2 A1 PdF0 10 PVs 30 PMs
Vantagens: Alquimista, Clericato, Familiar (escolha um de acordo com o totem), Magia Branca ou Negra (escolha uma), Magia Irresistível 1, PMs Extras x2, Xamã
Desvantagens: Código de Honra (escolha um de acordo com o totem), Fetiche
Diferente do bruxo, o xamã é um usuário de magia que adquiriu seus poderes através do contato com espíritos ancestrais representados na figura de totens místicos. Seus poderes são diretamente ligados aos valores representados por esses totens, o que lhes impõe um código de conduta moral diferenciado.
As imagens usadas no artigo são artes oficiais do jogo, e pertencem à Catalyst Game Labs.