Vencedor do ENnie de prata de Melhor Produto Gratuito em 2010, Lady Blackbird é um .pdf de 16 páginas que contém um módulo de aventura steampunk. Escrito, diagramado e ilustrado por John Harper, o documento tem tudo o que é necessário para jogar: uma situação inicial, um mini-cenário, personagens prontos do dito cenário e regras suficientemente simples de modo a possibilitar aprendizado rápido e não necessitar de preparação prévia. Prossiga e saiba porque esta prata da premiação é ouro puro.
Premissa
A personagem do título, Lady Blackbird,está a fugir de um casamento arranjado com um certo Conde Carlowe. Para tal, ela contrata os serviços de uma nave de contrabandistas, The Owl, para levá-la de seu palácio no mundo Imperial de Ilysium até as distantes Remnants, de modo a poder estar com seu amante secreto: o rei pirata Uriah Flint.
No meio do caminho, The Owl acaba perseguida e capturada pelo cruzador Imperial Hand of Sorrow, sob a acusação de estar voando sob falsa bandeira.
Lady Blackbird, sua guarda-costas, Naomi Bishop e a tripulação da The Owl estão detidos enquanto o comandante Imperial checa os registros da nave contrabandista. É questão de tempo descobrirem a que se passa e que, além disso, o dono da The Owl não é ninguém menos que o infame pária Cyris Vance.
Cenário: The Wild Blue
O Wild Blue é um “céu” de gases respiráveis (quão conveniente) cujos mundos orbitam uma pequena estrela fria. Os acadêmicos dizem que a dita estrela é feita de pura Essência, a energia usada pelos feiticeiros. É um sistema solar pequeno, leva-se em torno de 6 semanas, em nave regular, para se cruzar de um extremo a outro. Os mundos imperiais são próximos, a viagem entre eles toma um ou dois dias.
(Sim, é pura fantasia se formos assumir que os planetas, que devem ser pequenos, dadas as dimensões do conjunto, possuem gravidade terrestre, como de fato deve ser o caso. Há quem diga, de certo por causa das naves, que se trata de ficção científica — se for o caso, então é soft^n, quando n = número enorme.)
Temos, abaixo do “céu” as Lower Depths, uma camada de gases densos e venenosos, corrosivos. Naves que ali adentram são invariavelmente danificadas, e tal área é usada primariamente como maneira de fugir ou se esconder de perseguidores imperiais. É um lugar arriscado, por abriga as sky squids (“lulas celestes”, monstros tentaculados que podem chamar outros com uma espécie de “canto de baleia”).
O mini-cenário é descrito em uma página e, além das descrições que resumi acima, conta ainda com uma lista de nomes comuns para habitantes do sistema, e descrições breves, de um parágrafo cada, dos pontos ressaltados no mapa.
Sistema e Personagens
Esta é a ficha de um dos cinco pre-gens contidos no documento. Metade de sua área traz o resumo das regras — na verdade, são praticamente todas as regras do jogo. Existe uma página adicional com instruções para o mestre e exemplos de obstáculos e outra com habilidades adicionais — que os personagens podem adquirir à medida que avançam (vulgo “evoluem” ou “sobem de nível”). As páginas restantes, além de uma com estatísticas para a The Owl, trazem as mesmas fichas de personagem com a adição de campos em branco (para os avanços) e outra completamente “virgem”, para a criação de novos personagens. (O documento não traz regras para a criação de personagem, mas elas são fáceis de intuir, tanto que já existe um .pdf de fãs com tais diretrizes.
Os campos que marquei toscamente compõem o personagem, a saber:
1. Traits (Características): os atributos/habilidades/perícias do personagem. São amplos — coisas como “Sorrateiro”, “Feitiçaria”, “Criação Aristocrática”… Cada uma possui dentro de si diversos Tags (“Marcadores”), que detalham as ditas características.Cyrus Vance, por exemplo, possui a característica “Ex-Soldado Imperial” cujos marcadores são: Tática, Comandar, Hierarquia, Conexões, Mapas, Naves de Guerra Imperiais.
2. Keys (Chaves): são bem parecidas com os Aspectos do FATE, mas seu funcionamento é mais simples. Elas dizem coisas sobre seu personagem e, quando influem na narrativa, têm efeitos mecânicos. Naomi Bishop, a guarda-costas de Lady Blackbird, por exemplo, possui a Chave do Guardião — que descreve sua missão de guarda-costas da Lady Blackbird –, a Chave da Vingança — que descreve seu ódio contra o Império, que a escravizou no passado — e a Chave do Guerreiro — que descreve a satisfação que sente ao batalhar inimigos dignos/desafiadores.
3. Secrets (Segredos): são habilidades especiais do personagem, únicas. Seus efeitos são variados. Algumas permitem realizar ações incomuns, impressionantes ou de outra forma impossíveis para os demais; outras permitem, uma vez por sessão, re-rolar um resultado que tenha falhado. Lady Blackbird, por exemplo, possui o Segredo do Stormblood — permite que usei feitiçaria se é capaz de falar, e lhe concede dois tags adicionais, Master Sorcerer e Stormblood — e o Segredo do Foco Interior — uma vez por sessão, pode re-rolar uma falha quando usar Feitiçaria.
4. Condições: quando o personagem falha em um teste, o mestre pode lhe impor uma condição para refletir os acontecimentos. Elas são: Ferido, Morto, Cansado, Irritado, Perdido, Caçado e Capturado. Morto quer dizer “presume-se estar morto”. As condições não possuem efeitos mecânicos por si — em vez disso, põem o personagem em uma situação difícil que ele deve resolver.
A menos que uma situação apresente perigo ou complique as coisas no caso de uma falha, rolagens não são necessárias — o personagem simplesmente consegue. Nos demais casos, deve rolar dados (comuns, de seis faces, vulgo d6). Sempre que o personagen precisar realizar um teste, rola 1d6. Se o personagem tiver uma Característica relevante/que ajude na tarefa, adicione mais 1d6. Se o personagem possui Marcadores relevantes, adicione 1d6 por marcador aplicável. Os personagens começam com um pool de 7 “dados bônus”, que podem adicionar em quantidade que julgarem adequada a qualquer rolagem.
Cada dado rolado que cair com o resultado 4 ou maior é um sucesso. O personagem precisa de um número de sucessos igual ou maior à dificuldade, que é 2-Fácil, 3-Difícil, 4-Desafiador, 5-Extremo.
Se o personagem obtém sucesso, realiza a ação pretendida e perde quaisquer dados do pool usados. Se ele falha, não atinge o objetivo, mas recupera quaisquer dados do pool que usou e ainda recebe um dado adicional para seu pool. O mestre complicará a situação de alguma forma, e o personagem pode tentar novamente.
Um exemplo concreto, dentre os apresentados no capítulo (página, na verdade), ilustra melhor as coisas. (Entre colchetes, esclarecimentos meus.)
Batalha de Skyships
É preferível sempre estar acima do inimigo em uma batalha de naves celestes — a menos que o veículo esteja equipado para entrar nas Lower Depths…
Obstáculos: Manobrar para um tiro sem impedimentos: [dificuldade] 3. Manobrar contra uma nave menor, mais rápida: 4. Atirar numa nave inimiga: 3. Atirar numa nave menor, mais rápida: 4. Evitar fogo inimigo: 3. Evitar muito fogo inimigo: 4-5.
Complicações: The Owl é acertada e perde controle ([condições da nave] Danificada & Vazando, Lenta). Mais naves inimigas surgem. Sua nave é direcionada a uma tempestade pela ação inimiga. A luta atrai uma sky squid.
Não existe um “sistema de combate” (ou de conflito) à parte do sistema de situações “simples” — qualquer situação é um Obstáculos que possui uma dificuldade e que, se não for superado, gera complicações que prolongam a ação (com novos obstáculos).
Falemos sobre as Keys. São elas que indicam traços particulares e de histórico do personagem, e seus benefícios mecânicos estão ligados ao avanço do mesmo. Cada uma possui uma descrição, uma condição de “acertar a chave” (hit the key) e outra de abandonar a chave (buyoff). Como exemplo, uma das chaves de Snargle, o piloto goblin da The Owl:
Chave do Temerário
Você brilha em situações perigosas. “Acerte a chave” quando fizer algo impressionante que seja arriscado e irresponsável (especialmente façanhas de pilotagem).
Abandonar: Ser muito, muito cuidadoso.
As chaves possuem os seguintes efeitos mecânicos. Quando você “acerta”, recebe um dentre dois possíveis benefícios: ou ganha 1 Ponto de Experiência (XP) ou adiciona 1 dado ao seu pool (que pode conter um máximo de 10 dados). É uma função de recompensa por interpretação e por agir de acordo com o personagem — se você se esforça para interpretar e de fato “entra” no personagem, o sistema lhe fornece benefícios mecânicos.
Chaves também podem trazer problemas — semelhante ao Compel dos Aspectos do FATE. Quando a temeridade do Snargle o põe em situações de perigo, isso traz um retorno — recebe 2XP ou 2 dados para o pool (ou 1XP e um dado).
Quando um personagem acumula 5XP, estes se convertem em 1 avanço. Um avanço pode ser usado para:
Adicionar uma nova Característica (baseado em algo aprendido durante o jogo ou alguma experiência passada que vem à tona), ou;
Adicionar um Marcador a uma Característica existente, ou;
Adicionar uma nova Chave (não é possível ter a mesma chave mais de uma vez),ou;
Aprender um Segredo (se houver meios para tal).
Avanços podem ser acumulados indefinidamente e gastos a qualquer momento, mesmo em meio a uma luta.
Quando ocorrem as condições de abandonar uma chave (listado na descrição da mesma, como vimos), o personagem tem a opção (não obrigação, notem bem) de abandoná-la. Se ele o faz, perde a chave mas, em retorno, recebe 2 avanços (que podem ser usados para adquirir outros elementos de personagem, inclusive outras chaves, com base na situação do abandono, ou acumulados para gasto posterior).
Existe também o Refreshment, uma cena de descanso na qual os personagens podem se recuperar e interagir, de maneira a saberem mais uns sobre os outros (e gerarem ganchos de história, por que não?). Neste descanso, o pool “regenera” de volta para 7 dados e o personagem pode eliminar uma condição ou recuperar o uso de um de seus Segredos.
Sobre o mestre de jogo
A seção do mestre traz conselhos bons e diretos sobre como conduzir a história. A primeira diretriz vai soar familiar para aqueles habituados a sistemas narrativos: Escute & Faça perguntas, não faça planos. A aventura começa com uma situação inicial, como vimos, e cabe ao mestre fazer perguntas aos jogadores sobre como seus personagens reagem, e, a partir das respostas, elaborar como a situação se desbodra, e daí alimentar o ciclo com mais perguntas. O trabalho do mestre é descrito como: escutar e re-incorporar, interpretar os NPCs com gosto, criar obstáculos interessantes e impor condições como conseqüência dos eventos (especialmente quando testes falham).
O tópico “Diga sim e procure por obstáculos” dá detalhes de (presumivelmente) como usar os obstáculos no jogo, e o tópico “Condições”, por sua vez, detalha como usá-las em jogo. Note que o mestre jamais rola quaisquer dados — qualquer NPC usado conta como um obstáculo.
Este estilo pode soar estranho para os mestres da “velha guarda”, acostumados a montar aventuras estruturadas em que o final já está definido em maior ou menor grau, cabendo aos jogadores apenas encontrar a saída do labirinto construído pelo mestre. Aqui é diferente — em vez de preparação exaustiva, o atributo de que o mestre se beneficia é o raciocínio ligeiro e criatividade rápida. Ele pode criar NPCs memoráveis, claro, mas não dará a eles fichas cheias de habilidades “fodonas” — suas ações/resistências serão níveis de obstáculo, e seus recursos engenhosos são modos como a situação se complica.
Ainda que seja declarado que a preparação é mínima ou inexistente, o bom mestre ainda pode se lançar em tal empreitada, mas é um tipo diferente de preparação. Em vez de se debruçar sobre livros de regras para compor encontros contra monstros específicos ou montar mapas intrincados com salas de tesouro e armadilhas particulares, o mestre empreende uma pesquisa mais conceitual. Assiste filmes ou lê romances sobre o assunto, de maneira a garimpar idéias de situações interessantes para modificar, torcer e usar, faz pesquisa sobre temas que quer abordar em detalhe. Quer dar aquele ar genuíno às inevitáveis batalhas sobre naves? Relatos históricos sobre combates aéreos da Segunda Guerra podem prover o material necessário. O mestre também pode reunir imagens evocativas ou criar uma playlist com músicas que passem o clima da aventura.
Uma coisa ressaltada aqui que não costumo ver com tanta freqüência nas seções do mestre é um verbo-chave: escutar. Os personagens dos jogadores são as estrelas, logo, nada mais justo que suas ações sejam o ponto central da aventura, que se vai cristalizando em torno deles e suas ações, em oposição a fazer deles ratos num labirinto.
O mestre ainda é capaz de planejar situações de antemão. Claro que sim. Mas conduzirá os personagens de maneira sutil, com situações consonantes com os conceitos dos personagens. E se os jogadores não “morderem a isca” e optarem por um rumo totalmente distinto, o bom mestre descarta seus planos sem preocupação ou pesar — ele é capaz de criar novas e interessantes situações. O dever do mestre é criar uma história em que todos se divirtam o máximo possível, não forçar os personagens a atuarem o roteiro da sua peça.
Considerações finais
Lady Blackbird é um RPG narrativo e rules light como poucos. Tem um sistema simples, sem ser simplista, refletindo um excelente trabalho do autor em garimpar o melhor de jogos como o FATE e Mouse Guard, combinar tudo e transformar em uma mecânica que é ao mesmo tempo interessante e fácil, rápida de aprender.
Dos sistemas de foco narrativo com que sou mais familiar, PDQ e FATE, o Lady Blackbird parece conseguir aliar os pontos fortes e expurgar os mais fracos. Do PDQ ele tem a descomplicação, mas não a uniformidade mecânica; do FATE, ele tem os mecanismos de recompensa interpretativa sem o peso.
É um daqueles casos que nos mostram que regras podem, sim, estar amarradas à interpretação, sem cair na abordagem comum (e fraca) de regras para interpretação. O sistema aqui não recompensa sua habilidade de memorizar páginas e páginas de regras, de montar o personagem “mais forte” e usá-lo “para ganhar”. O sistema de recompensa premia a habilidade do jogador em combinar o conceito de seu personagem em ações evocativas que, por sua vez, ajudam a aventura a seguir em frente.
Outro ponto que muito me surpreendeu é o sistema de evolução/avanço do personagem, um departamento por vezes fracos nos sistemas narrativos. No FATE ele é inexistente* (você pode modificar o personagem ao longo da trajetória, mas ele nunca “sobe”); no PDQ, é mais lento, e ligado apenas a situações em que o personagem falha. Aqui o sistema é ágil, não limita o avanço do personagem apenas para “entre aventuras” (como na maioria dos sistemas) e, o mais importante, recompensa a coisa certa — interpretação em um jogo cujo foco é contar histórias sobre os personagens.
*Jogos como o Dresden Files RPG, Starblazer Adventures e Legends of Anglerre trazem um sistema de “experiência”, mas com aquele “peso médio” usual no FATE.
Dá aquela pontinha de indignação que um jogo tão completo e bem projetado tenha perdido o ouro pelo ENnie de Melhor Produto Gratuito para o .pdf de playtest de classes da Paizo, que, conforme o ângulo, pode nem ser visto como um produto gratuito de fato — é apenas uma espécie de preview com parte de um produto que, em si, é pago. Mas a indicação por si só já fez o trabalho para este produto — dar a ele evidência e a oportunidade para que uma público maior, que de outra maneira não teria contato com o jogo, o conhecesse.
Foi o que aconteceu com este que vos escreve, e por isso apenas os ENnies já valeram a pena.
Recursos
Você pode baixar o .pdf gratuitamente na página do Lady Blackbird. Aproveite e dê um pulo no site da one.seven, há diversos outros jogos gratuitos muito legais.
Para as regras de criação de personagem, baixe o Darkening Skies. Este material de fã, além disso, traz novos elementos conceituais para o cenário (e mecânicos, na forma de novas Chaves e Segredos relacionados aos conceitos).
Alguns hacks podem ser encontrados aqui. Outros gêneros, como western, pós-apocalíptico e survivor horror são portados para o sistema.