Menos deuses e mais religião

Abra seu livro de cenário de fantasia preferido. Não importa o sistema. Há algum tipo de arquétipo de sacerdote ou religioso? Salvo raríssimas exceções, sim. Somos informados a respeito do deus ou deuses que esse tipo de personagem venera? Sim novamente. E ficamos sabendo um bocado sobre esta ou aquela deidade — sua arma preferida, aparência, os outros deuses de quem ela gosta, aqueles para quem ela faz beicinho e diz “não brinco mais,” etc. Em algum suplemento, é bem possível até encontrar a ficha de personagem da divindade. É bastante material a respeito de entes… geralmente distantes, com quem apenas muito raramente os personagens travam interação direta. Sobre as religiões erigidas em torno destes tais deuses, isto é, sua estrutura eclesiástica, rituais, dogmas e práticas, elementos com os quais se esperaria ser comum uma interação direta, todavia, muito pouco nos é informado. Por quê?
Eu sei que isso vai parecer perseguição, mas aponto o Dungeons & Dragons como um dos culpados por essa inversão de prioridades. Cito parte do texto sobre a classe Clérigo do Dungeons & Dragons Rules Cyclopedia, de 1991.

The D&D game does not deal
with the ethical and theological beliefs of the
characters in the game.

Em bom português: o jogo de D&D não lida com as crenças éticas e teológicas dos personagens no jogo.
Por que isso? Se não se quiser religião no jogo, penso em uma estratégia muito simples — não mencione personagens religiosos em primeiro lugar. Se a função do clérigo se resume a ser um médico de batalha, por que não um médico de batalha logo de uma vez? “Científico” demais? Faça dele um “mago branco” ou coisa semelhante — a série Final Fantasy tem feito isto faz um bom tempo, sem perda alguma de qualidade.
Mas, para bem ou para mal, os personagens religiosos estão aí. Já que foi adicionado o elemento religioso ao que poderia muito bem ser um white mage, por que tal esfera, que encerra potencial, não é melhor explorada? Seria acanhamento, um receio “pisar em calos”?

Pisando em ovos para falar de religião

Nunca vi assunto tão espinhoso quanto religião. Conforme a situação, é pior do que falar sobre times de futebol. Assim sendo, é melhor não nos aprofundarmos e evitar confusão, certo? Não. Todo o tipo de subterfúgio já surgiu para proteger assuntos ligados ao conceito de divino de qualquer análise séria: quantas vezes você já não ouviu se tratar de “uma questão de fé,” e que a razão seria, portanto, “incapaz” de chegar a qualquer conclusão a respeito do assunto?
O RPG é velho conhecido da controvérsia religiosa, com sacerdotes atacando o jogo como “demoníaco” e por aí vai. Talvez o assunto não seja aprofundado pelo receio de causar ainda mais controvérsia. Não vejo razão para tal: um crente moderado, lúcido, é perfeitamente capaz de reconhecer o conteúdo de um livro de RPG como aquilo que realmente é: ficção. Nada mais, nada menos. Já o crente paranóico e delirante verá chifre em cabeça de cavalo sempre e toda vez. Mesmo que o livro não fale uma linha sobre religiões, só a presença de uma seção de “Divindades,” com uma listagem de diversos deuses falsos (não por serem fictícios, mas por serem deuses que não o deles) já pode ser suficiente. E mesmo que se removam todos os indícios de deuses ou qualquer coisa remotamente ligada a eles, ainda restará a magia e, todos sabem, “feitiçaria” é “demoníaca.”
(Ora, até mesmo um livro inócuo — mas muito bacana, li e recomendo — como Harry Potter “promove a bruxaria” na cabeça destes lunáticos. Bruxaria, aliás, que é tão real e tangível, para eles, como “influência demoníaca” e coisas do tipo. Nós jogamos jogos de fantasia — eles, ao que parece, vivem fantasia, em um mundo cheio de demônios à espreita e “forças do mal” prontas para lhes corromper a alma.)
Ainda que a canção Ask dos Smiths possa começar afirmando que “timidez é legal,” somos imediatamente informados que ela “pode nos impedir de fazer as coisas que gostaríamos.” Acredito ser o caso aqui — a maioria dos elementos de fantasia já constitui a “marca da besta,” e, assim sendo, vejo duas direções. A primeira: eliminar todo e qualquer elemento que o religioso possa achar ofensivo. Quem me conhece sabe que, ao vivo, eu seria incapaz de propor uma coisa dessas com uma cara séria. Temos a outra direção, em que timidez não é legal — se a conexão pé-jaca se mostra inevitável, você vai realmente apenas pôr o dedão do pé nela, como se estivesse estimando a temperatura da água de uma piscina? Não seja esse tipo de pessoa. Por mim, corro para pegar impulso e mergulho na jaca, ambos os pés, sem medo de chafurdar na polpa.
Até porque, o “pivô do mal” em discussões acerca do tema é a existência ou não da divindade em questão que a religião prega como existente. Não chegaremos sequer perto disso — não por acanhamento, mas por ser irrelevante. De deuses em si, os RPGs já estão bem servidos. Discutiremos, todavia, os elementos tangíveis de uma religião. Seus dogmas (provenientes de escrituras sagradas escritas por mãos humanas, demasiadamente humanas), seus rituais, costumes, estrutura eclesiástica… Estes não são uma questão de fé — são estruturas sociais e de conhecimento como qualquer outra obra humana e, por conseqüência, perfeitamente passíveis de observação e discussão.
Caso formos obrigados a pisar em ovos, seremos igualmente obrigados a esmagá-los sob a sola de nossos pés.

Por que religiões são desejáveis?

Porque religiões são ótimas em conflito. Conflito é gasolina de aventura. As religiões tendem a não largar o osso quando o assunto é defesa de seus dogmas, mesmo quando estes são provados obsoletos ou substituídos, no conjunto de valores da sociedade, por coisa mais eficaz. Ou você acha que não há quaisquer conseqüências nefastas na postura do Papa Palpatine em condenar métodos contraceptivos que são comprovadamente eficazes tanto no controle de natalidade quanto na prevenção de doenças? E isto só para citar uma das posturas menos controversas. Esta situação, se transposta para um ambiente de fantasia, é capaz de garantir a combustão do motor de uma aventura inteira. Detalhes do mundo de jogo são também bons amigos da interpretação.
Mesmo que D&D seja um RPG claramente voltado para lutas, é uma inverdade pensar que jogos sob esse sistema (e cenário implícito) careçam de estórias complexas e bem elaboradas, e que os personagens não tenham interesse algum senão colecionar classes de prestígio e acumular quinquilharias mágicas que dão bônus. Estórias de qualidade e personagens bem construídos podem surgir daí, e o fazem.
Há também os sistemas como o FATE e o PDQ, em que ações dos personagens e estrutura da ação dependem diretamente de elementos narrativos, e nesses casos, material descritivo é ainda mais importante. E mesmo que isto seja mais uma “regra não escrita” em D&D, é muito comum que jogadores deste sistema também atribuam igual relevância à interpretação e às descrições que a auxiliam. Seja qual for o caso, tais informações, normalmente vistas como  fluff, ou triviais, tornam-se importantes e relevantes.

Dúvida: os deuses existem?

Muitos esquecem também que, embora os livros (de cenário de RPG)  afirmem que existem deuses e que eles entulham seus clérigos com magia divina até as orelhas, tal existência de deuses não é tão inequívoca assim. Eu sei que a televisão funciona por eletricidade e pela ação de um tubo de raios catódicos por ter assistido a aulas de Física. Caso eu não tivesse tido qualquer instrução em ciência, alguém que dissesse que “deus faz as imagens aparecerem ali” teria grandes chances de me lograr.
Em cenários de fantasia medievalesca/low tech, temos também a magia arcana, de sabor mais pseudo-científico (inclusive dividida em disciplinas de estudo, como Ilusão, Evocação, Biolog…, digo, Necromancia…). Assim como no meu exemplo da televisão, quem garante que os tais “milagres clericais” também não possam ser obra dessa “arcanetech”? Já posso ouvir protestos, e, por isso, faço um pedido — para fins de raciocínio, ignore qualquer restrição artificial entre magia arcana ou divina que seu jogo preferido possa vir a apresentar. Sim, artificial — é usada mais para equilíbrio de regras e em virtude de uma dose cavalar de tradição do que qualquer outra coisa. Tente ver através dos olhos de um habitante do cenário. Nem um aventureiro, um habitante comum mesmo. Se ele não souber que foi o cara de batina que conjurou a magia X, me diga com sinceridade — ele será capaz de saber, com 100% de certeza, se é arcano ou divino?
Alguns dizem que “duvidar da existência de deuses em fantasia medieval é como ver um avião no céu e duvidar da existência dele.” Errado. Ninguém duvida do avião — a dúvida estaria mais deslocada para: quem fabricou o avião? Quem o pilota? Qual o propósito de seu vôo? Magia divina, como já argumentei, pode ser facilmente atribuída à sua prima, a magia arcana. E os deuses? Pior ainda — clérigos de altíssimo nível e botinhas de saltitar Planos à parte, que parcela da população consegue, de fato ver um deus e afirmar “está ali, sem sombra de dúvida existe”? Uma parcela ínfima — e não só entre a população em geral, mas entre os aventureiros inclusive! E nem chegamos na fauna exótica — quem disse que um elemental ou bicho incorpóreo não pode ser confundido com uma divindade ou sinal/emissário da mesma? Já temos precedentes como um arbusto em chamas e uma jumenta falante, logo, um “sinal de presença divina” pode ser facilmente falsificável.
Você, que lê o livro de regras, não tem margem alguma de dúvida. Mas lembre-se de que conhecimento do jogador não se deve confundir com conhecimento do personagem. E em se tratando de personagens, esses são facilmente passíveis de duvidar da existência do divino. E isso é bom: o conceito de fé, afinal, prevê acreditar em alguma coisa mesmo na ausência de qualquer evidência (e, nos piores casos, a despeito de provas contrárias). Nossos personagens não estão em situação muito diferente da nossa, que não temos qualquer prova concreta da existência de deuses. Mesmo sem qualquer prova convincente, muitos de nós acreditam. Isso não é virtude do deus, e sim da religião em torno dele.

Religião sem os deuses

Como disse acima, é o tipo com que temos mais contato — alguém aqui já viu o Jeová ou foi capaz de detectar sua presença com um método que, se empregado conforme instruído, possibilitará que qualquer um o teste? Nunca vi tal coisa. E, ainda assim, a religião a ele correspondente possui muitos adeptos. Ou seja, não é causa do deus em si, mas da estrutura mui humana criada ao redor dele. Mesmo que seu livro de cenário afirme que os tais deuses existem, na visão dos habitantes do mundo e da maioria dos personagens, não faz diferença eles existirem ou não. Os resultados são os mesmos.
Precisamos de um dogma, que geralmente é vendido no formato de um “livro sagrado.” Lá estão todas as “verdades absolutas,” escrita por mãos bem humanas (ou humanóides), mas cuja autoria é creditada a uma fugidia “inspiração divina.” Note que o conteúdo não é somente “espiritual” — parece ter muito mais a ver com os interesses pessoais dos fundadores da religião. O texto usado de base pelos cristãos tem origem nas crenças de tribos de pastores, logo, há toda uma carga de preservação do grupo às custas do bem-estar de grupos percebidos como rivais (tanto que há até regras claras sobre que tipo de escravo pode-se ou não ter e em quais condições). A sociedade deles era patriarcal, logo, há uma série de medidas projetadas (mesmo que inconscientemente) para enquadrar como “cidadão de segunda categoria” qualquer um que não pertença a esse “Clube do Bolinha” — subserviência da mulher (que, se adúltera, pode ser morta a pedradas) e ódio irracional aos homossexuais (que, na visão machista, são “piores que as mulheres” — eles, afinal, são homens, mas não seguem as regras do Clube do Bolinha ao se entregar a atividades “de mulher” — ser penetrado, usar certos tipos de roupa…).
Temos até a seção de culinária da Ana Maria Brega, que diz que não se pode comer ou mesmo tocar em um animal marinho que não possua escamas e barbatanas (vai ver é porque nunca saborearam uma boa paella!), e toda uma neurose em relação aos animais de cascos fendidos. Ah, mencionei que é pecado usar trajes constituídos de tipos diferentes de fibra têxtil? Sua camiseta de 90% algodão e 10% poliéster (ou aquele linho mais barato que contém algodão na composição), segundo eles, pode te levar pro inferno! Se tiver tempo, leia o Levíticos — há coisas estranhíssimas escondidas lá.
Como vê, uma escritura sagrada tem mais, muito mais do que um conceito raso como “deus da guerra.” São esses detalhes que faltam às religiões de cenário de RPG. Você não precisa de panteões imensos — um monoteísmo bem feito faz um trabalho bem melhor. Ninguém precisa escrever um livro sagrado inteiro para uma religião de jogo — nem mesmo eu sou anal-retentivo para tanto! –, mas não dói fazer algumas perguntas ao compor uma religião (ou incrementar uma pré-existente): quem foram os fundadores dessa religião? Em que condições eles viviam? Que valores sociais tais fundadores viam como interessantes e, portanto, dignos de disseminação e manutenção? Que valores ou costumes eles julgavam uó? Na religião cristã, toda a filia em torno do sofrimento — desde ajoelhar-se em superfícies rígidas para rezar aos extremos de auto-flagelação da Opus Dei, a imagem romanceada do mártir… — apresenta correspondência incrível com as condições de seus praticantes nos primórdios do culto ainda na Roma antiga, quando eram perseguidos e mortos. Uma das figuras máximas nesta crença morreu em execução, e o instrumento usado para matar — a cruz — se tornou símbolo da religião. Caso Jesus tivesse sido executado nos dias de hoje, é bem plausível supor que seus seguidores usariam, presas a correntinhas no pescoço, miniaturas de cadeira elétrica.
Adicione algumas coisas práticas, que um dia foram relevantes, mas, com o tempo, perderam significado — judeus, um adepto me informou em certa ocasião, proibiam o consumo do porco em virtude das doenças advindas da carne de porco mal cozida (você estudou isso no colégio que eu sei). Mas, pela natureza dogmática, mesmo hoje, sendo possível cozinhar a carne em condições seguras em que tais doenças não chegam até nós, a proibição continua na religião. Pense nisso também — que tipo de informação fazia sentido na época da criação da religião, mas que hoje é obsoleta e mantida por tradição apenas?
Mesmo que a religião se espalhe por todo o mundo, traços da cultura da localidade onde ela nasceu mantêm a sua marca. Explore isso também! Vamos supor, é meio ridículo, eu sei, uma religião que diz que um tipo específico de cão é sagrado. Digamos que, na área em que a religião surgiu, esse animal era raro e muito apreciado por sua pelagem exuberante, timbre melódico do latido, sei lá. Já sei, o uivo deste animal é, segundo a crença, capaz de chegar aos ouvidos da divindade, que derrama bênçãos por curtir demais o uivo. Agora imagine essa religião inserida em uma outra área, em que o tal cão é comum, mas tão comum e numeroso que chega a ser uma praga. A religião, sendo inflexível, vai continuar a dizer que o guaipeca é sagrado — poderemos ver uma cidade com as ruas cheias desses bichos, latindo, fedendo na chuva, roubado comida, revirando latas de lixo, atrapalhando o sono das pessoas com suas “sinfonias”de uivos, enfim, coisa bem desagradável. Mas as pessoas nada fazem contra os cuscos, pois a tal religião que os diz sagrados é fortíssima lá por alguma outra razão — os cães se tornam “efeito colateral.”
Como vê, livros sagrados têm mais, muito mais que apenas uma mitologia de criação ou coisa semelhante.
E a estrutura eclesiástica, como se dá? Ela é necessária — padres não apenas rezam missa: há toda sorte de trabalhos burocráticos, de manutenção e de propaganda necessários para manter a religião flutuando. Tais sistemas geralmente contam com uma hierarquia — principalmente em se tratando de uma cultura patriarcal, em que há sempre o “cabeça” ou “chefe” da casa/família/empresa. Como tal hierarquia é constituída? No catolicismo, padres não podem ter filhos por um bom motivo — isso iria desviar sua lealdade, que não seria mais voltada exclusivamente para a instituição, sendo dividida com os laços familiares entre pais e filhos. (E também é mais barato manter um só padre do que manter esse mesmo padre mais sua esposa e eventuais filhos.) Nem toda religião é celibatária — e se linhagens de sangue se formam dentro da estrutura eclesiástica? E se os laços de grupo forem menos rígidos, como nos druidas? E cabe lembrar que uma estrutura centralizada não é uma norma, ainda mais em cenários low tech em que a comunicação entre locais distantes é lenta e precária — dica: sumo-sacerdotes ou pontífices máximos não precisam estar presentes em toda religião.
E cabe observar que ordens eclesiásticas são constituídas de indivíduos. Fora os mais idealistas, boa parte terá objetivos particulares. Que podem muito bem influenciar em suas ações dentro da religião. E lembre-se também de que tais grupos, por mais que se pronunciem como tal, não são “totalmente espirituais” — é uma instituição no mundo real com pessoas reais. Que possuem vontades políticas e que não serão nada tímidas em fazer o que for preciso para manterem seus valores como dominantes na sociedade, mesmo que à custa do bem-estar de um número muito maior de pessoas.
E há também aqueles membros da hierarquia que, por seu carisma e obras, acabam sendo cultuados (até como santos ou coisa parecida) ou, pelo menos, vistos como exemplo — ações e crenças pessoais desses indivíduos podem acabar incorporados, mesmo que informalmente, a uma parte muito importante: rituais e costumes.

Rituais e costumes (ou, não seja um “cristianismo de chapéu engraçado”)

Sempre que se fala em definir as particularidades de uma religião, a abordagem normalmente vista é muito, mas muito triste e cansada — pegar como base a religião que te empurraram na infância (não é como se tivéssemos idade para conscientemente escolher, afinal), mudar alguns nomes, pôr um chapéu engraçado e, voilá!, está pronta uma religião… meh.
“Como será um casamento da Deusa do Conhecimento? Será que os convidados ganham um livro de Sudoku?” Alto lá:  quem disse que a religião dela sequer precisa ou justifica algo como casamento como nós conhecemos?” Sim, “como nós conhecemos.” Dez, quinze, vinte deuses diferentes (e, assumo, número correspondente de religiões, por conseqüência), e todos lidam com casamento em um modelo ultra-específico (sempre duas pessoas, das quais uma precisa ter testículos e a outra necessita de ovários)? Os suplementos, em geral, não chegam a discutir isso — mas os jogadores simplesmente assumem que assim seja, visto que, de um modo geral, são apenas familiares com uma religião (aquela em que foram doutrinados, possivelmente), e supõem que toda religião (ou, em casos perniciosos, toda religião “verdadeira”) precisa seguir tais moldes.
Tenho uma hipótese: isso se dá pela familiaridade com apenas uma religião, mas o conhecimento, mesmo que superficial, de vários deuses — afinal, duvido que alguém aqui não seja familiar com figurinhas como Atena e Hades. Tenta-se, como conseqüência, aplicar os moldes de uma situação (monoteísmo cristão) a outra radicalmente diferente (politeísmo da antiguidade clássica). Não faça isso. Divindades diferentes, dogmas e valores diferentes, interesses diferentes — práticas e rituais igualmente diferentes. Até porque, a situação comum nos mundos de fantasia não é a mesma que vivemos no nosso, diversas religiões rivais competindo entre si no “mercado de fiéis (e suas carteiras),” defendendo que seu deus é o único verdadeiro. No politeísmo, todas as divindades são vistas como igualmente existentes e parte de uma “grande família.” Famílias podem muito bem dividir funções — você lava a louça, seu pai leva o lixo para fora, sua mãe organiza os gastos da casa. Duas religiões podem possuir rituais, “sacramentos,” em comum, ou pelo menos, parecidos — mas eu não esperaria que todas praticassem exatamente os mesmos rituais com as mesmas funções. Eu poderia esperar cerimônias matrimoniais em religiões como a de Khalmyr ou Marah, mas acharia meio estranho para Tannah-toh e ficaria alarmado em ver isso para Megalokk. Não acharia estranho ver clérigos de Tenebra metidos em aposentos escuros, embalsamendo cadáveres e oficiando cerimônias de enterro (usando pesadíssimos véus e capuzes para não serem tocados por Azgher), diria “hein?!” se me apresentassem os festeiros clérigos de Marah fazendo o mesmo.
Por vezes, em cenários de RPG, elementos podem parecer temáticos em excesso. São reinos, raças, deuses, etc. que passam a impressão de serem monolíticos; deuses cujas áreas de influência, por exemplo, são divididas de maneira que passa a impressão de ser certinho demais; a área de influência de um deus raramente tem uma interseção com aquela designada a outro, no melhor estilo “o purê não deve tocar as ervilhas.” Ainda que isso possa, sob certas condições, parecer um defeito, é bem possível, no detalhamento de uma religião fantástica, fazer disso uma força.
Usemos como exemplo o Tormenta. Lá temos o Khalmyr, que é o deus da ordem e outras coisas de neurose anal-retentiva. Ainda que deuses assim sejam fortemente associados ao conceito de tradição, pode ser mais interessante focar mesmo na ordem. Haveria uniões entre os rituais de Khalmyr, mas quem disse que precisam ser casamentos no molde cristão? Em vez disso, toda união sob a égide de Khalmyr seria aquilo que o casamento é em última instância — um contrato. Não precisaria ser entre homem e mulher, ou sequer entre apenas duas pessoas. O critério seria uma simetria de intenções e de investimento; como preparação, os envolvidos orariam segurando um objeto que representa essa união; tais objetos são, na ocasião da cerimônia, postos sobre os pratos de uma balança encantada, que mediria as tais intenções. O casamento, aqui, não teria funções de “moral” ou assegurar que uma das partes fique parindo pirralhos — o casamento é um elemento de coesão social. Pessoas unidas por acordos bem delineados, em teoria, formam núcleos mais estáveis, e a ordem é assim reforçada. Podemos ainda adicionar uma estranheza — grupos podem se unir, mas desde que o número de componentes seja par. Religiões são cheias de arbitrariedades, afinal.
Se conseguirmos ignorar a homofobia inerente aos brasileiros-das-cavernas, o que nos impede que casamentos na religião de um deus da guerra se dêm apenas entre pares de soldados homens, criando um vínculo como aquele existente entre os espartanos? Se quisermos a religião machista, podem haver mulheres no clero, cuja função é a procriação de novos soldados  — apesar de ser casado com outro soldado, um dado combatente é convocado a, periodicamente, “comparecer” com uma destas madres procriadoras.
A religião de um deus do caos associado à loucura pode se basear inteira em distúrbios psiquiátricos. Seria um caso sui generis, em que o dogma não é aprendido e memorizado — ele é parte inerente da psicologia do clérigo, um dogma “automático e sempre ativo,” que influencia todas suas ações. Foi esta a linha que segui para elaborar detalhes hipotéticos sobre um clero para Nimb — que será, aliás, publicado aqui no blogue em pouco tempo, acredito. E querem saber? Foi uma experiência estimulante elaborar tal material — sintomas de distúrbios mentais se prestam otimamente como base para ritos.
Pesquise também sobre ritos reais, sejam eles religiosos ou não — culturas tribais possuem interessantes ritos de iniciação à maturidade, por exemplo. Quer incluir casamento? Que tal se instruir sobre o que existe além da monogamia?
Outro assunto que também é relevante são os cultos à carga, cargo cults, em inglês. Eles ocorrem quando culturas menos desenvolvidas tecnologicamente têm contato com uma mais desenvolvida. Visitantes chegam em aviões trazendo todo tipo de quinquilharia impressionante; depois, os visitantes não mais aparecem. Os nativos entram em parafuso e constróem “pistas de pouso” e “aviões,” feitos de palha e madeira, de forma a atrair de volta os “aviões divinos.” Cheguei a ler sobre um que, inclusive, contava com uma espécie de sacerdotisa, uma mulher enrolada com um fio de metal que chamavam de “rádio,” capaz de se comunicar com os “deuses” dotados de tecnologia. É uma das raras oportunidades que se tem de observar uma religião em formação, e é um ótimo guia para montar a sua. Que tipo de evento, essencialmente mundano*, mas impressionante aos observadores, ocorreu, e que elementos ele possui que podem servir como base para uma religião?
*Ou nem tanto, tendo em mente a possibilidade de magia e fauna fantástica.

Estrutura de cultos

Cultos parecem coisa de gente doida — eles se juntam em grupos, tendem a ser isolacionistas, hostis às coisas externas, seguem costumes estranhos e acreditam em coisas mais bizarras ainda. Segundo o Isaac Bonewits (autor do excelente Authentic Thaumaturgy), isso não é exclusividade de cultos pequeno — segundo ele, mesmo as maiores e mais mainstream das religiões seguem os mesmíssimos moldes de um culto. Isso aí — inclusive a sua religião, muito provavelmente, se você segue uma.
De maneira a demonstrar sua teoria, Bonewits criou o Método Avançado para a Avaliação do Perigo de Cultos, que contém uma lista de características que podem existir em maior ou menor grau em uma religião com características de culto. Ainda que o Bonewits não seja exatamente imparcial — adepto de religião pagã, crente que magia é coisa real, relutante em aceitar fatos científicos… –, sua ferramenta parece bastante precisa. Ainda que não fosse, continuaria servindo para nosso propósito — criar parâmetros para uma religião fictícia. Você pode ler o link com todos seus detalhes, ou se contentar com uma listagem dos ditos critérios, que segue:
Controle Interno: quantidade de poder político e social interno exercido pelo(s) líder(es) sobre os membros; falta de direitos claramente definidos para os membros dentro da organização.
Controle Externo: quantidade de influência política e social externa desejada ou obtida; ênfase em direcionar o comportamento político e social externo dos membros.
Sabedoria ou Conhecimento Alegado pelo(s) líder(es): quantidade de infalibilidade declarada ou implícita das decisões ou interpretações doutrinárias ou das escrituras; número e grau de credenciais não verificadas ou inverificáveis alegadas.
Sabedoria ou Conhecimento Creditado ao(s) líder(es) pelos membros: quantidade de confiança nas decisões ou interpretações doutrinárias ou das escrituras feitas pelo(s) líder(es); quantidade de hostilidade dos membros a críticas internas ou externas ou a esforços de verificação.
Dogma: rigidez dos conceitos sobre a realidade ensinados; quantidade de inflexibilidade doutrinária ou “fundamentalismo”; hostilidade ao relativismo e ao situacionismo.
Recrutamento: ênfase colocada na atração de novos membros; quantidade de proselitismo; exigência de que todos os membros tragam outros novos.
Grupos de Fachada: número de grupos subsidiários usando nomes diferentes daquele do grupo principal, especialmente quando as ligações são escondidas.
Riqueza: quantidade de dinheiro ou propriedade desejada ou obtida pelo grupo; ênfase nas doações dos membros; estilo de vida econômico do(s) líder(es) em comparação ao dos membros comuns.
Manipulação Sexual dos membros pelo(s) líder(es) de grupos não-tântricos; quantidade de controle exercido sobre a sexualidade dos membros em termos de orientação sexual, comportamento ou escolha dos parceiros.
Favoritismo Sexual: progresso ou tratamento preferencial dependente de atividade sexual com o(s) líder(es) de grupos não-tântricos.
Censura: quantidade de controle sobre o acesso dos membros a opiniões externas sobre o grupo, suas doutrinas ou seu(s) líder(es).
Isolamento: quantidade de esforço para impedir os membros de se comunicarem com não-membros, incluindo família, amigos e namorados.
Controle sobre os desistentes: intensidade de esforços direcionados a prevenir ou recuperar desistentes.
Violência: quantidade de aprovação quando usada pelo ou para o grupo, suas doutrinas ou seu(s) líder(es).
Paranóia: quantidade de medo de inimigos reais ou imaginários; exagero quanto aos poderes percebidos dos oponentes; prevalência de teorias conspiratórias.
Rigidez: quantidade de desaprovação de piadas a respeito do grupo, suas doutrinas ou seu(s) líder(es).
Submissão da vontade: quantidade de ênfase em que os membros não tenham de ser responsáveis por decisões pessoais; grau de perda de poder individual criado pelo grupo, suas doutrinas ou seu(s) líder(es).
Hipocrisia: quantidade de desaprovação de ações que o grupo oficialmente considera imorais ou antiéticas quando feitas pelo ou para o grupo, suas doutrinas ou seu(s) líder(es); disposição para violar os princípios declarados do grupo para ganhos políticos, psicológicos, sociais, econômicos, militares ou de outro tipo.
É bem possível que você nunca tenha pensado em uma religião — real ou fictícia — nesses termos. Acredito que seja desejável e interessante fazê-lo — às perguntas ali presentes, respostas muitos interessantes tendem a surgir. Ah, sim, e serve para qualquer religião, não só aquelas definidas como “malignas.”

Religiões “malvadas”

Estas tendem a ser mal desenvolvidas. Chegam a ser caricaturais, uma espécie de “Central da Maldade,” onde se reúnem a Flora (A Favorita) e a Odete Roitman para, sei lá, sapatearem sobre filhotinhos de cachorro e furarem olhos de canários com a ponta seca de um compasso. Aqui entra outro ranço do cristinanismo — de um lado, as religiões “do bem,” branquinhas, com raios solares e plumas alvas; do outro, as religiões “do mal,” onde todos se vestem de preto, se adornam com crânios, devoram criancinhas… Toda religião “malvada” mais parece uma caricatura de (aquilo que se acredita como sendo) um culto satânico, ou talvez um daqueles relatos estereotipados de “ex-bruxas” que fazem testemunhos na “Sessão do Descarrego.”
Quem sabe alguma coisa mais crível; em vez de uma religião malvada-666-from-hell, que tal uma religião apenas auto-interessada? Pense em empresários e grandes corporações — duvido que os envolvidos sejam ativamente malvados, interessados em causar dor e horror. Eles são apenas egoístas — focam em seus interesses próprios e não ligam (ou conduzem forte contorcionismo de consciência para ignorar) para os efeitos colaterais de suas práticas — concentração obscena de renda, emburrecimento das pessoas mediante o incentivo de uma mentalidade consumista… Claro que isto é um extremo — se você for falar com o diretor de uma dessas empresas, ele é bem capaz de convencê-lo que suas motivações são boas. E é bem possível que sejam. Mas é aquela coisa — “de boas intenções, o inferno está cheio.”
Quando for elaborar sua religião antagonista, pense em um objetivo legítimo, mas cujas medidas efetuadas para alcançá-lo gerem efeitos colaterais indesejáveis.
E dê um jeito nas roupas, pelamordedeus. Quando você coloca um cultista “du mau” vestido como se tivesse saído de uma convenção sadomasoquista e tão coberto de ossos que parece que um esqueleto explodiu em cima dele, é praticamente o mesmo que pôr um letreiro em neon em sua testa com os dizeres “Malvado! Me mate!” Tente não ser óbvio.
E o mesmo vale para as religiões “boas.” Não faça-os goody-goody. “Mas o sistema de Tendência diz que…” — mande pro inferno isso. Ele se presta muito bem para gerenciar proibições de magias, itens e classes de prestígio, mas se aplicado para construção de cenário… Repito: de boas intenções o inferno está cheio. Enquanto no D&D existe toda uma retentividade de que “um fiel não pode estar a tantos passos da tendência da deidade, yadda, yadda,” o Eberron, mesmo sendo, a rigor, D&D, manda isso para as favas. E religiões mais interessantes temos, da variedade em que existe corrupção no clero e, portanto, com possibilidades mais ricas. Supõe-se até que na religião da Silver Flame, um culto “do bem,” quem fala através da tal chama-oráculo não é deus algum, mas, sim, um demônio muito esperto.

Considerações finais

Se eu fui capaz em não pisar demais em eventuais calos, pode-se notar que há muito mais sobre religiões do que a informação contida em descrições de deuses de RPG ou até mesmo o conhecimento sobre religiões reais que temos, caso nossa única fonte tenha sido o doutrinamento na religião em questão. Considerar a religião como um fenômeno mundano, mantendo o foco nas manifestações que são inequívocas em sua existência, nos pode ajudar a notar pequenos detalhes que, so outro enfoque, teríamos ignorado. E é bom ter consciência disso — é justamente com estes aspectos da religião que interagimos diretamente, logo, pode-se defender que, na maioria dos casos, é com estes aspectos com que nossos personagens também hão de interagir.
Uma fé inabalável, de certezas absolutas, é algo desejável pelas religiões em seus fiéis, de fato. Mas, se generalizada essa postura, subtraímos a incerteza, que é emocionante. Já em um ambiente em que a dúvida pode florescer, questionando e até mesmo ameaçando a fé, as coisas perdem aquela certeza chata e inabalável. Quando há dúvida e conflito, temos um terreno fértil para as estórias de nossos personagens — caberá a eles definir para qual lado a balança há de pender no fim das contas.
Para finalizar, deixo um exercício de pensamento (para você, leitor, e também para mim, que só pensei nisso após terminar de escrever o artigo): como seria uma religião sem fé? Se deuses são um fato inequívoco e facilmente testável, cuja existência e influência estão acima de qualquer dúvida, como se daria a religião, uma vez que o conceito de fé não se faz necessário? Seria o fiel mais crítico? Seria o deus uma espécie de político ou estrela do roque, preocupado em agradar fiéis e interessados em questões de mercado de crença? Algo bastante empolgante (e possivelmente pouco parecido com religião como nós conhecemos!) pode sair daí.
E reforço: se existem fragmentos de regras que, se aplicados a religiões, as deixam menos interessantes, ignore as malditas regras. A mecânica existe para gerenciar situações e elementos de jogo, “descrevendo-os” sob parâmetros manejáveis. Se, em algum momento, as regras passam de ferramenta para camisa-de-força, limitando suas idéias, em vez de ajudá-lo a dar-lhes forma, não hesite em espremer e torcer mecânicas até que elas se encaixem no conceito que você idealizou. Você manda nas regras, e não o contrário.

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50 Resultados

  1. Tinha escrito um comentário enorme mas perdi. Vou repetir só o elogio: genial. A melhor coisa que já li na internet sobre RPG. Parabéns!
    .-= Último post no blog de Ricardo Peraça: Heroes of Might and Magic 3 – Esqueletos e Zumbis =-.

  2. FenrirX disse:

    Lembrei de um amigo (falecido, infelizmente) que queria jogar com um paladino, mas não queria seguir nenhum deus do cenário (por ele ser evangélico, e o cenário era Tormenta em 1999), então, ele me pediu para ser um paladino de um deus que somente ele acreditava, do qual ele chamou de "deus único". Foi uma das melhores atuações que eu já vi, pois, ao contrário do que normalmente se pensam, ele não citou nenhum dos seus dogmas aos jogadores nem aos NPCs. Esse é um exemplo sadio do uso de divindades em um cenário.

  3. SiriosCh disse:

    Cara, isso é quase um dissertação de TCC de Literatura, com mais algumas citações e umas referencias fica perfeito… Brilhante sempre brisei nesse assunto, tanto que sempre que jogo com um clérigo pego de um Deus menor que ninguém conhece..
    .-= Último post no blog de SiriosCh: [30 Coisas] – que só em Power Rangers vemos =-.

  4. Shamassu disse:

    Ótimo artigo cara, parabéns! Eu ri muito quando li “Papa Palpatine”, nunca percebi a semelhança. Mas de todo jeito, muito bom mesmo o texto, pontos de vista muito interessantes. Bom trabalho.

  5. Rodrigo Elutarck disse:

    ADOREI!!!!
    Bem estou escrevendo um livro de RPG, (escrevendo mesmo e querendo publicar) vou usar o sistema d6 que gostei.
    O artigo me deu uma idéia, mago branco para substituir as clérigos e crenças, esta é uma idéia genial que posso usar se a preguiça bater. No cenário que escrevo estou me inspirando na guerra dos trinta anos (guerra santa no sacro império romano germânico) eu pisaria na jaca totalmente, pois as igrejas uma politeísta e outra monoteísta estariam em guerra, não havendo um controle central (papa ou outra coisa) os reis sendo chefes religiosos estariam fazendo guerras ou alianças. Outra coisa que tenho que escrever é que vou retirar a dicotomia bem e mal (deuses do bem e deuses do mal) acho isso um saco, o mal seria substituído por algo intangível dentro de todos e aqueles que se entregarem a isso seriam mandados para o plano inferior (apenas um lugar dos excluídos, que vira e mexe vem criar problema).
    Resumindo a idéia do mago branco, me permite deixar de escrever um capitulo inteiro, além de todos os detalhes de religião no cenário.

  6. Gil disse:

    De fato, é um artigo muito bom, mas ainda é possível acrescentar um ou outro ponto.
    Quando você citou os ritos, indicou as funções possíveis de cada clérigo e seus respectivo deus: Casamentos contratuais para Khalmyr, a festança de Marah, o velório e sepultamento sob julgo de Tenebra, etc.
    Mas vale lembrar que nem toda vila possui um clérigo de cada deus para realizar essas funções. Às vezes, há no local apenas clérigos de um deus ou mesmo apenas um acólito (clérigo 1°) responsável por todas as cerimônias (casamento, funeral, maturidade, entre outras).
    Nesses casos, por simples pressão do povo ou por autoridade (afinal, ele é um membro clerical) servos de Marah realizam o funeral e sepultamento, exaltando a paz final nos braços da deusa. Não é uma função normalmente realizada por eles, mas eles são os únicos presentes para dar a benção final.
    (Enquanto digitava, surgiu uma dúvida: servos de Marah fariam uma cerimônia tranqüila – nos moldes católicos, mas menos funestra, ou uma gigantesca festa, considerando que agora o falecido foi para um lugar melhor ou por motivos similares – como no “dia dos mortos” méxicano? Pensem nisso.)
    Por fim, e se nesse local surge um servo de outro deus? Principalmente, servo de uma divindade rival? A coexistência será pacifica? Que atitudes serão tomadas pelos clérigos diante da “concorrência”? Essas atitudes são bem vistas pela divindade?
    São mais perguntas, algumas não tão pertinentes, mais ainda assim passíveis de uma reflexão ou de se tornar bases para aventuras.

    • Shamassu disse:

      Essa questão dos clérigos rivais é subjetiva, depende dos valores pessoais dos clérigos e como eles se sentem em relação ao outro. Um exemplo é no Crânio e o Corvo, em que Vanessa Drake, sendo serva de Keen, é ótima amiga de Camille, clériga de Khalmyr, e eles são deuses rivais, mas elas escolheram deixar a disputa divina para suas divindades, e serem amigas. Também tem a relação de Zebediah Nash com Vanessa, sendo ele um descrente orgulhoso e ela uma clériga muito fiel, e eles conseguiram se dar bem, percebendo o valor de cada um, além das crenças.

    • Shido disse:

      (Em duas partes; o Intense Debate repudia comentários longos…)
      Pois então, Gil, você foi rápido e já se adiantou, desbravando um terreno de que pretendo falar na seqüência: MENOS religião.
      As situações que você apontou são perfeitamente plausíveis, e, de fato, eu não abordei esta especificidade de locais pequenos/isolados que contam com um adepto apenas. Penso em duas formas de abordar isso.
      Na primeira, a cultura do local tem fortes laços com a religião lá estabelecida (aquela do sacerdote existente). A igreja de tal sacerdote se firmou lá por possuir pontos em comum com a cultura local, ou por ter, em épocas passadas, moldado a tal cultura. Neste caso, cerimônias que "faltam" (sob a nossa visão de que é necessário ter esta ou aquela cerimônia) não fariam realmente falta, talvez — a cultura deles, em termos de religião, sempre se satisfez com os ritos do clero lá situado — um viajante externo pode sentir falta de algum rito, mas, naquela localidade, ninguém sente falta; não é como se os tais habitantes da localidade conhecessem uma situação diferente para poder existir uma base de comparação.

    • Shido disse:

      Claro que existem situações relevantes, como a morte, que não ficarão simplesmente sem um evento associado. Novamente, não façamos um cristianismo com chapéu engraçado. É realmente necessário um ritual ao redor do defunto, mudando apenas cor e sabor? Talvez não. Na sua hipotética vila que cultua Marah — que provavelmente seria algo parecido com uma comunidade hippie –, pode haver um ritual para a morte, mas sem haver qualquer interação direta com ela. Em vez de um velório, poderia haver a "última festa" (eu chamaria de "saideira") em que o enfermo ou idoso frágil, vestido com suas melhores roupas e adornado com flores, participa de uma bebedeira homérica, na qual ele é dopado e levado, a seguir, a um local afastado para morrer ao relento. Há um ritual de "fim da vida," mas que jamais é encarado como morte de acordo com nosso conceito. A bebedeira, inclusive, pode terminar com um *veneno*, uma eutanásia, desejada e aceita de bom grado — o corpo idoso e frágil já não possui a mesma disposição para farrear, e o fim da vida, nesse caso, não é encarado com medo, mas como uma forma de findar uma etapa que pode estar sendo desagradável.
      A segunda via é "menos religião" — por que praticamente *tudo* em fantasia tem relação com deuses ou religião? O nome de praticamente tudo, de cidades a acidentes geográficos, tem nome de divindade; praticamente todo costume tem base religiosa. Onde estão as instituições e costumes *seculares*? Esses são tristemente negligenciados. Religião nenhuma (real ou fictícia) cobre *todas* as bases. Ainda bem — costumes seculares não são nada ruins.

    • Mas vale lembrar que nem toda vila possui um clérigo de cada deus para realizar essas funções. Às vezes, há no local apenas clérigos de um deus ou mesmo apenas um acólito (clérigo 1°) responsável por todas as cerimônias (casamento, funeral, maturidade, entre outras).
      Nesses casos, por simples pressão do povo ou por autoridade (afinal, ele é um membro clerical) servos de Marah realizam o funeral e sepultamento, exaltando a paz final nos braços da deusa. Não é uma função normalmente realizada por eles, mas eles são os únicos presentes para dar a benção final.

      Apenas exemplificando: no final de Holy Avenger, Arsenal casa Sandro e Lisandra; não é uma função clerical ao qual está acostumado, como Sumo-Sacerdote do Deus da Guerra, mas mesmo assim ele a realiza.
      Melhor até do que uma divisão rígida de sacramentos pelos deuses, é seguir a sugestão do colega Gil: clérigos em geral possuem condições de realizar todos os sacramentos comuns (casamentos, batizados, funerais, etc.), mas sacerdotes de deuses diferentes conduziriam as mesmas de forma distinta.
      Excelente artigo, Shido. Excelente.
      .-= Último post no blog de Cavaleiro de Ornitorrinco: Regras Alternativas: novas escolas e técnicas (parte 3) =-.

  7. Meks disse:

    O artigo ficou muito bom.
    Dá pra expandi-lo bastante caso se faça a leitura crítica de livros que são dedicados a divindades – tipo o Deities and Demigods – ou exemplificar com os poucos RPGs em que religião detalhada até o último fio de cabelo é ponto crucial do cenário, tipo Call of Cthulhu ou In Nomine. Fica a sugestão para um próximo artigo.

  8. pedrogsena disse:

    Só vi as respostas do Shido agora. Damn Intense Debate… só eu lembrei de Quincas Berro d'Água com essa sugestão de "última festa" como cerimônia de morte?

  9. Oriebir disse:

    Caramba, posso ouvir daqui o zumbido que os yajne e farfal estão fazendo na sua cabeça! =D

  10. MalkavFelipe disse:

    Belissimo artigo.
    Religião é algo complicadissimo de de falar e debater, e você conseguiu me passar um jeito diferente de olhar pra elas ^^
    Parabens (de novo)

  11. Alow, Shido!
    Curto muito o quê e como vc escreve. Só queria fazer uma observação acerca do comentário sobre o "Clube do Bolinha" e livro de Levítico que vc fez. Sou batista e por isso tenho tido a oportunidade de estudar bastante a bíblia. Tuas observações são muito boas se vc considera o olhar de um cara de hoje. Mas há de se lembrar que há o contexto onde as coisas foram produzidas. As leis de Levítico, por exemplo, são estranhíssimas pra NÓS, mas praquele povo, naquela época, com aquela linguagem, era perfeitamente entendível.

    • (continuando… e reescrevendo o que apagou-se aki…)
      E só destrinchando a coisa: Homens tb eram apedrejados qndo pegos em adultério. Homossexualidade (assim como a zoofilia) era vista como deturpação da vontade divina (q criou homem e mulher um para o outro).
      O Torá (5 primeiros livros da bíblia) pregava que o povo de Israel fora o povo escolhido por Deus para servir de sacerdotes no mundo. Eles deviam, portanto, mostrar pureza e diferença em seus costumes. Logo, não era nada irracional, mas justificado pelos dogmas.
      Muito das leis dos hebreus vêm desse simbolismo, pois era um povo muito "teatralizado"… eles rasgavam roupas quando em desespero ou tristeza e jogavam cinzas na cabeça qndo humilhados! Então muitas leis e costumes são metáforas, lembretes visíveis que apontam para princípios morais e religiosos. É o caso das roupas de dois fios: aquilo que vc veste, te recobre e te identifica não pode ser misturado, deve ser puro. O que tb se referia ä proibição de misturas com os costumes e deuses dos outros povos (muitos inclusive com sacrifícios humanos e rituais de prostituição).

      • (continuação…)
        As restrições alimentares são um caso ainda mais simples: saúde e higiene. Moluscos, por exemplo, apodrecem muito rapidamente e o povo vivia com o clima rigoroso do deserto, sem condições ideiais pra conservar alimentos.
        Em se tratando de justiça entre os sexos, as leis hebraicas até que eram equilibradas e civilizadas pros padrões da época. Lembro de ter visto num livro de história que o Código vigente na época era o de Hamurábi e lá o homem adúltero pagava uma multa ao marido lesado… já a mulher adúltera era açoitada, amarrada num tronco e jogada no rio…
        Claro que sempre houveram aqueles que distorceram as leis em favor próprio. Há uma diferença beeeem grande entre a lei no papel e sua aplicação. Oi? Ah, mas nós somos brasileiros. Nunca vimos coisas assim por aqui! =P
        Bem, é isso… só uma lembrada na questão do CONTEXTO. E isso tb é RPG pq como o Shido bem escreveu, os detalhes enriquecem a eperiência de jogo!
        Falow!
        braços!

      • Shido disse:

        "Logo, não era nada irracional, mas justificado pelos dogmas."
        E quem criou esses dogmas mesmo? Quem foi que escreveu que a vontade divina é "homem e mulher um para o outro," excluindo-se, arbitrariamente, quaisquer outras modalidades? Dica: descendem de grandes primatas, têm postura ereta e usam linguagem e ferramentas — isso aí, humanos.
        E de acordo com a tradução que li, enquanto homossexualidade é "abominação," a bestialidade é descrita com um termo mais brando, "confusão." Fora que o apedrejamento de adúlteras não é a única medida tomada contra a mulher: quem foi que sucumbui à trela da serpente e garantiu uma passagem só de ida para fora do Éden, segundo a lenda? Sem falar que, volta e meia, lá aparece a mulher, como tentadora, pronta para tirar os homens "direitos" dos trilhos da retidão. Claro que a supressão da mulher não era exclusividade dos hebreus, mas ele puseram uma ênfase enorme nisso.
        De fato observou bem: eram os valores da época. Mas vale lembrar que nós, sociedade pós-Iluminismo, analisando isso em retrospecto, sabemos que se tratavam de valores barbáricos (para não dizer pior). E é esta a postura que adoto por dois motivos: o primeiro, é que escrevo para leitores do presente; a segunda é um pouco "denúncia do absurdo," visto que existem grupos que tentam impor ou manter tais valores em nossa sociedade atual, a despeito de terem sido deixados para trás pelo avanço de nossa ética.
        E você abordou aqui um ponto importantíssimo de que me esqueci totalmente: a "promiscuidade" entre cultos, religiões que adotam e adaptam costumes e rituais de outras. Isso dá muito pano para a manga, e talvez uma "parte 2" abordando estes pontos e expandindo anteriores seja uma boa idéia.

        • Aew Shido!
          "Irracional" é algo que não teria ou observaria a razão, lógica. Foi nesse sentido da palavra que me opus dizendo que havia uma lógica *dentro daquele contexto*. Pode não fazer sentido pra vc, ou ser um absurdo pra outros, mas havia uma sequência de razões que explicavam as coisas.
          Vc afirmar que o q quer que seja em termos de religião foi criado por homens é vc falar de fora do aspecto religioso. Do mesmo jeito q vc argumenta q a cultura criou a religião, eu afirmaria q foi a religião judaica q modelou a cultura deles. É a sua verdade contra a minha. E como não temos como provar q Deus existe redundamos no velho ponto de q é questão de fé. Eu não acredito em Darwin. Dizer q o homem inventou Deus pra mim é absurdo e tenhos meus argumentos pra pensar assim.

          • Então essa é uma rixa q não adianta pq redunda no vazio. Tudo q podemos fazer é tentar compreender um a visão do outro e por isso estou expondo um pouco mais o que tenho entendido da visão q sigo.
            Sim, e concordo com vc q havia muitos valores q acho absurdos. E ainda mais absurdos tentar se valer da religião para oprimir ou tirar vantagens. Ainda mais de uma religião como o Cristianismo. Não posso falar por todos pq minha experiência pessoal é limitada, mas ao menos os batistas vêem na bíblia um papel digno para homem e mulher (diferentes, mas não desiguais em valor perante Deus) assim como diversos outros pontos de maneira diferente do q era visto pelos antigos. Teologia é *estudo* afinal de contas, e pelo menos o q conheço têm sido levado à sério e avançado bastante.
            Vários erros de tradução, por exemplo, apontados como falhas na Bíblia, são hoje conhecidos e considerados nos estudos batistas, por exemplo.
            Enfim, como o Shido mesmo escreveu lá em cima, existem os razoáveis e os fanáticos. Não tomem os fanáticos como unanimidade em se tratando de religião. Existem pessoas q levam a coisa à sério o bastante pra não se contentar com respostas prontas e líderes enganadores.
            Pra uma visão q com certeza vai perturbar vcs sobre o Cristianismo, sugiro o livro "A Cabana".
            O livro "Cristianismo Puro e Simples" de C. S. Lewis é muito bom sobre esse debate todo (inclusive na parte filosófica).
            Hey! quem kiser bater um papo meu e-mail é [email protected]
            braços! =D

          • Há!
            Faltou comentar a questão da homossexualidade.
            Sim, usa-se palavras diferentes. Mas a bíblia tb afirma que "Deus não é Deus de confusão, e sim de paz" (o Novo Testamento funciona como um esclarecedor do Velho, então me baseio nele pra minha visão. Sou cristão, não judaizante, afinal de contas). Ou seja, dá no mesmo.
            A gente costuma dizer q não há nem "pecadinho" nem "pecadão". Isso são classificações humanas. Existe o rompimento da relação do homem com Deus (ou seja, pecado) que somente Cristo é capaz de reatar (salvação) e isso vêm pelo sacrifício e esforço de Deus/Cristo (graça).
            Nisso se resume a Bíblia. Toda interpretação Cristã gira em torno disso (pelo menos a batista)
            Talvez a dureza das palavras seja porque no homossexualismo há uma ação deliberada entre as partes. Note que os versículos seguintes falam de "contaminação" e "iniquidade" incluindo todos os anteriores (inclusive o adultério e o sexo com mulher menstruada). Tb se usa essas mesmas palavras qndo a bíblia fala de prostituição e de idolatria!
            Mas pra ver as palavras mesmo, só indo no hebraico. Conheço um pastor especialista em Antigo Testamento e podemos bater um papo com ele sobre isso pra tirar as dúvidas (ele saca hebraico, inclusive). Que tal? =D
            braços!
            valeu!

          • Shido disse:

            Camarada-anão Math, o Intense Debate "engoliu" minha resposta, logo, serei mais resumido:
            Darwin: evolução é tão questão de crença quanto teoria de germes ou gravitação universal — são fatos testados e estabelecidos. Ainda que o "Sobre a Origem das Espécies," sozinho, seja incompleto, desenvolvimentos posteriores (estudo de uma maior quantidade de fósseis, genética, embriologia comparada…) completam e aperfeiçoam a teoria original. E se for elaborado um modelo que melhor explique a vida do que a evolução, não tenha dúvida de que será substituída.
            Homens criando os deuses: diversas religiões já deixaram de ser populares e se tornaram mitologia. Logo, crê-se que sejam invenção humana, com o intuito de explicar fatos sobre o mundo que as pessoas da época não compreendiam. Com base nos precedentes, por que seria o cristianismo diferente? (Ainda: cultos à carga.)
            Machismo/patriarcalismo: no momento em que se polariza a coisa em homem e mulher, isto é feito para defender os privilégios da esfera masculina. É pernicioso: não só se rouba todo um mundo de experiências da pessoa (seja homem ou mulher), para quem esta ou aquela ação/traje/etc. é visto como "errado" ou "inapropriado," como também é um instrumento para discriminar e punir quem não respeite tal normal. (Há muito mais sobre isso, que será tema do meu próximo artigo.)
            Pastor especialista no antigo testamento: gostei da sua sugestão. Verei também se colho, lá na faculdade, informação sobre o assunto com acadêmicos da área de História e Antropologia. Poder-se-ia cruzar tais informações e chegar a bons esclarecimentos! =D

          • Esse intense debate é fogo, rapaz…
            Darwin: até onde eu sei ainda é "Teoria" da Evolução (mesmo sendo neodarwiniana devido aos avanços da genética). Ela traz evidências. Mas PROVAS mesmo, ainda não. Gravitação e germes, por exemplo são FATOS. Mas a ciência ainda busca os Elos Perdidos de q tanto fala. E mesmo que tenha encontrado e comprovado o paradigma da pós-modernidade é o questionamento. Como vc mesmo disse: ainda não surgiu algo melhor. E como toda ciência moderna se baseia na Evolução os cientistas não largam o osso. Vc acha impossível q evidências contrárias aos dogmas científicos sejam abafados em prol da manutenção do status quo? Eu não. Soa conspiratório, mas não seria a primeira. Tenho um livro em casa sobre um PhD em física detonando a Evolução, então esses pontos de vista são possíveis mesmo em cientistas.
            Homens vs. deuses: Aí lidamos com 2 situações: ou o Deus cristão existe ou não. Se Ele não existe, então vc está certo… é tudo criação humana. Mas se Ele existe isso implica em algo real e absoluto. E não exclui a possibilidade de outras crenças terem sido criadas, apesar de que afastadas dEle. Sacou a idéia? O livro de Romanos fala disso no comecinho: Deus existe, mas o homem se voltou à adoração das criaturas/forças/mitos, ao invés de ao verdadeiro Deus. Se acreditamos ou não é questão pessoal. Mas vale lembrar que crer que bananas são azuis não altera a cor delas… a visão cristã é essa.
            Machismo: concordo TOTALMENTE! por isso sou batista: estudei a doutrina e tenho percebido que segue a bíblia em seu sentido mais pleno: "Nisto não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus" (Gálatas 3:28) =D
            Massa! Faz aí as pesquisas e vamos ver no que dá =D! E-mail me!
            braços!

          • Shido disse:

            Intense Debate: debater nunca foi tão difícil(TM). Tardo, mas respondo.
            Teoria, em se tratando de ciência, é *bem* mais que hipótese — para constituir teoria, o objeto em questão é amplamente estudado e, a seguir, divulgado na comunidade científica, para que outros possam pôr as teorias à prova e expor eventuais erros. Gravitação universal também recebe o mesmo nome de teoria. O problema aqui, com os religiosos, ao menos, é que enquanto a gravitação não ameaça nenhum dogma (heliocentrismo já foi controverso, mas a igreja acabou tendo de aceitá-lo), a evolução vai totalmente contra o mito de criação cristão. Me parece a única razão para sempre declararem a montanha de evidência a favor da evolução como insuficiente. Já há uma quantidade de "elos perdidos," mas aposto que, mesmo que se peneire *toda* a massa da terra e se encontrem *todos* os fósseis que ainda não descobrimos, o religioso ainda não se verá convencido — a natureza dogmática da religião é "blindada" nesse aspecto. Quanto à controvérsia entre os cientistas — físicos estudam física, não biologia. Um PhD em física detonando a evolução tem o mesmo valor de um biológo detonando a mecânica quântica.
            Saquei a idéia, mas não me convenço — praticamente toda religião se declara "a verdadeira," e, no fim, todas acabam se contradizendo. O livro dos Romanos é totalmente parcial nesse aspecto, logo, não consigo ter muita confiança. Até porque, sou incapaz de confiar em "homens de um livro só" — sempre busco diversas fontes, e em se tratando de religião, todas se contradizem. Estudos feitos sob um ponto de vista antropológico/sociológico, por outro lado, costumam ser mais consistentes, mesmo em se tratando de diversas fontes distintas.
            Vou ver os contatos que consigo fazer em termos de pessoal da História/Antropologia. Se tudo der certo, envio um email.
            Abraço.

          • Arquimago disse:

            Só uma questão, sou protestante e faz alguns anos que teve um palestra dada por uma doutora em biologia que faz parte dos crentes.
            Ela falou em resumo algo muito simples: Deus criou tudo, mas quem disse que tudo é como hoje? E que ele não "ajudou na evolução"?
            Ou seja os cavalos foram criação de Deus. Mas Os primeiros cavalos que Deus criou não são iguais aos de hoje.
            Existem muitas espécies e evoluções paralelas em ambientes parecidos, o caos foi responsável por tudo isso? Acaso? Cientistas cristãos dizem que não, Deus continua cuidando de sua criação.
            Bem foi só um pitaco nesse debate tão interessante, adorei ele, e se sair um artigo disse o dos contatos de vocês, vou gostar muito!

          • Shido disse:

            Conheço esse argumento: "deus criou as coisas em um dado momento, e depois elas seguiram por si." Isso dá no mesmo que somar zero ou multiplicar por um — eu posso supor *qualquer* origem mirabolante ("os primeiros seres saíram do espirro de Cthulhu!"), e isto em *nada* vai comprometer o conteúdo da análise dos fatos observados. Logo, é descartável. Somar zero ou multiplicar por um são operações desnecessárias que em nada modificam o resultado e apenas constituem uma operação supérflua adicional.
            Ademais, a evolução não atua somente entre espécies similares — levando a dizer que, no suposto Éden, deus criou cavalos, passáros, insetos, etc. primitivos. A origem é uma só. Por essas e outras que nosso genoma possui genes para o fabrico da gema do ovo — estão apenas "desativados," mas estão lá. A aplicação de hormônios e outras substâncias específicas permitem criar um pequeno dinossauro a partir de um embrião de galinha (pássaros estão muito próximos dos répteis, e por aí vai).
            Inserir uma figura de deus no meio não possui qualquer utilidade em termos de resultado — a única utilidade é aplacar os ânimos de crentes, que vêem na evolução algo ruim por comprometer a veracidade do texto do Gênesis.
            Sobre o acaso e as pressões da seleção natural, deixo para um artigo futuro em que pretendo abordar o uso de mecanismos evolutivos para se criar raças mais verossímeis — dica: não é puro "caos" ou somente acaso; tal componente existe, mas não é o único. (Usando como exemplo um "remake evolutivo" de uma raça que muitos adoram e, principalmente, adoram odiar.)
            Abraço!

          • Arquimago disse:

            O Gênesis não é para ser literal mesmo, um amigo meu ia ser padre e uma das primeiras cosia que ele aprendeu é que o Gênesis é um livro filosófico e não cientifico. Posso concordar que seguindo a racionalidade seja “multiplicar por 1” e o resultado final vai ser o mesmo, porem faz diferença para as pessoas, acabamos de entrar no terreno que é uma questão fé e por mais que se discuta podemos não sair do lugar, afinal fé é acreditar mesmo sem entender completamente.
            Quanto a evolução, eu sei que tem vários fatores, como aquele que consegue passar seus genes, ambiente ao redor, e muitos outros fatores, só quis pegar no ponto principal relacionado a discussão sobre religiões ; )
            E já Aguardo seu artigo sobre evolução, vai sair muita discussão legal! E eu adoro um debate! – não, aquilo de dono da verdade, mas debater mesmo!

          • M disse:

            Esse argumento de que a Teoria da Evolução “ainda é “Teoria”” é ridículo! Certamente, quem diz isso não conhece o funcionamento do método científico. E outra: não existe PROVA na ciência moderna, apenas evidências totalmente falseáveis.
            Ótimo texto Shido. Com certeza um dos mais úteis que li em termos de RPG.

  12. Excelente!
    Gilson
    (meu outro comentário não aparece)
    .-= Último post no blog de Gilson • RPG • Educação: Melhor texto explicativo sobre o que é RPG e como jogar, além do sistema Zip simplificado mais ainda =-.

  13. Synapse disse:

    Há uma complicação muito grande, provinda da forma como aprendemos tudo em que acreditamos, que é o fato de naturalmente nos dispormos a considerar certo o que conhecemos. Uma das melhores experiências intelectuais que eu já tive foi tentar me abster de tudo em que acredito para avaliar a situação que foi proposta ao grupo. Parabéns e boa sorte a todos que promovem a queima das vacas sagradas que são os Tabus que nos são ensinados!

  14. Spartanus disse:

    Hmmm…
    Meus posts sumiram.

    • Shido disse:

      Você não é bem-vindo a comentar coisa alguma que eu escreva. Nunca foi, aliás. Foi falha minha não ter avisado antes, mas agora você já sabe.
      Agora, com licença que eu preciso pesquisar uns preços de apartamento com o "meu macho."
      Passar bem.

      • Spartanus disse:

        Ora, ficou ofendido?
        Você me chamou de quê mesmo?
        Ahh sim… “Pedro Bó”. Um personagem de comédia burro feito uma porta.
        É engraçado você achar que tem o direito de ofender os outros e depois não gostar de receber uma resposta à altura.
        Se você quer ser bem tratado e respeitado , é de bom tom que você trate bem e respeite os outros.
        Agora, sabe o que é mais cômico?
        Você, provavelmente, dá chiliques para defender a própria “liberdade de expressão”. Entretanto, não quer respeitar a liberdade de expressão dos outros. É aquela velha história: “todo mundo é livre, dese que faça tão somente o que eu acho correto”.
        Não sei se parece mais o Tribunal do Santo Ofício, uma ditadura fascista ou uma ditadura comunista essa postura. Acho que é um ponto de encontro entre os três.
        E depois ainda quer sustentar que “tudo se discute”.
        Hipocrisia é uma m…

        • Shido disse:

          Qualquer assunto é discutível, mas tenho total liberdade de escolher com *quem* eu discuto.
          Ademais, sua mensagem original já se inicou em tom condescendente. Eu, também, só respondi à altura.
          E, reitero — não é bem-vindo a comentar qualquer coisa que eu escreva. Eu, igualmente, me comprometo a ignorar qualquer coisa escrita por você onde for. Não vejo nada de frutífero em qualquer comunicação que seja com você.
          Espero que estejamos resolvidos.
          Boa tarde.

          • Spartanus disse:

            Foi condescendente com o quê e onde, criatura?
            Eu perguntei porque era tão difícil entender que outro povo, em outra época, em outro continente teria outros valores.
            Onde está a condescendência nisso?
            Se você foi incapaz de captar a ideia não era te ofender, até porque seria desperdício de tempo.

  15. Fantástico artigo como sempre Shido… faz tempo escrevei algo que acredito ser um pouco semelhante. Talvez vc goste: http://www.ambrosia.com.br/2008/11/14/olhares-obshttp://www.ambrosia.com.br/2008/12/01/olhares-obs
    Parabéns cara

    • Shido disse:

      Camarada Felipe, gostei muito dos teus textos! Já conhecia o primeiro, e agora sou familiar com o segundo. Teus artigos são mais embasados em referências e muito mais organizados, porém. Tiro o chapéu.
      Gostaria, inclusive, de te fazer uma pergunta, se incômodo não for: você expõe que a religião dava forma a diversas características da sociedade medieval, o que faz sentido. Assim, se entendi corretamente, a religião aplica uma força sobre a sociedade. Mas se regressarmos suficientes séculos na "linha" histórica, seria correto afirmar que, na ocasião do surgimento/codificação de uma dada religião, tal "força" tenha se dado em sentido "contrário," isto é, que os costumes e tradições pré-existentes na sociedade foram os responsáveis por dar à religião a forma que ela veio à possuir?
      Se eu suponho corretamente, a religião se torna uma ferramenta poderosa de feedback positivo. Se tomamos o patriarcalismo, por exemplo, poder-se-ia dizer que a presença dele na sociedade hebraica imprimiu suficiente pressão para ser codificado dentro da religião e, uma vez isso feito, a religião passa a ser uma poderosa estrutura para a manutenção desta característica dentro da sociedade. Caso a coisa se dê desta forma, é possível que, ao criar uma religião bem sucedida, uma dada sociedade consegue armazenar suas crenças e costumes em uma "cápsula do tempo" — seus costumes e valores permanecem, inalterados, em um "estado de hibernação" dentro do conjunto de dogmas, sendo capazes de eclodir em circunstâncias propícias, "contaminando" a nova sociedade "hospedeira" que, ao assimilar a religião, assimila da mesma forma os costumes da sociedade em que a mesma foi originada. (Haveria, nesse caso, um problema — sob o ponto de vista secular: os costumes que originaram a religião vão se tornando obsoletos com o passar o tempo — supondo dogmas rígidos e absolutos –, e podem originar tensão dentro da sociedade em que florescem.)
      Faz algum sentido ou eu errei o tipo por quilômetros?
      Abraço!

  16. Faz algum sentido sim, mas não no caso da sociedade feudal. Por exemplo, o que você disse em relação aos hebreus é corretíssimo,mas no caso do cristianismo por exemplo, ele foi sim um dos principais transformadores da europa na medida que era uma religião estrangeira com valores até mesmo radicalmente opostos aqueles do império. A partir de sua inclusão a sociedade inteira se modificou para se ajustar a eles, fugindo necessariamente desta idéia de feedback positivo.

  17. Arquimago disse:

    Bem só para finalizar, excelente artigo e os comentários também.

  18. PH Silveira disse:

    Shido, sobre religião sem fé que vocêcomentou no fim do artigo: Forgotten Realms. Lá teve o Time of Troubles (achpque traduziram como tempo das pertubações) onde todos os deuses menos um andaram nas terra com um invólucro mortal, sem falar que se você não clama um deus como patrono você passa a eternidade no limbo depois de morrer. Isso não transparece muito nos suplementos mas algumas novels exploram esse tipo de visão das religiões de maneria primorosa.

  19. Silva disse:

    Olá Shido!
    Chegando atrasado pra dizer que o texto é excelente, um dos mais interessantes que já li sobre o assunto.
    E gostaria de acrescentar que essa tendência de reduzir deuses a fontes de spells e "vilões glorificados" na verdade começou com o suplemento de OD&D "Gods, Demigods & Heroes" lá em 1976, que reduzia divindades a meros construtos mecânicos.
    Vale notar que uma outra tendência originou nessa época com "Cults of Prax" ( [url ]http://index.rpg.net/display-entry.phtml?mainid=511[/url]) , lançado em 1979 pela Chasium para Runequest/Glorantha – este sim um tratamento antropologicamente correto da religião, inclusive abordando diversos pontos do seu texto. Infelizmente porém, não atingiu a popularidade do concorrente da TSR.
    Um abraço,

  20. Chapeleiro disse:

    Duvida: Os deuses existem ?
    E quando os deuses aparecem ?
    Tenebra com Petra
    Glórienn na Infinita Guerra
    Tanna-toh para sir Orion Drak e Vanessa
    Kallyadranoch
    Sszzass
    Valkaria
    E quando os Deuses Menores se tornam maiores ?
    Ragnar
    Hynnin
    Sem falar que nos pergaminho do leitores tem um ser dizendo que os supostos deuses não passam de seres muito poderosos.
    E sobre o casamento de Khalmyr eu acho que dependeria do clérigo, afinal. se for Justo poderia casar homem-mulher, homem-homem, etc
    Mas se for por Ordem deveria ser Homem-Mulher, poís a ordem da Vida por Lena é essa.

    • “Duvida: Os deuses existem ?
      E quando os deuses aparecem ?”
      Isso dá para elaborar usando o teu ponto seguinte:
      “(…) os supostos deuses não passam de seres muito poderosos.”
      É uma das minhas hipóteses preferidas, a de “deuses oportunistas” — são criaturas über-poderosas que acabam sendo percebidas como “deuses” por criaturas muito menos poderosas. Sobre os deuses em si, eu escrevi este outro artigo, pode ser do teu interesse:
      http://www./2009/06/26/inteligencia-divina-deuses-desumanos-e-outras-excentricidades/
      “Mas se for por Ordem deveria ser Homem-Mulher, poís a ordem da Vida por Lena é essa.”
      Além de furado, esse “argumento” é homofóbico. Não é como se não existissem relacionamentos (sexuais ou afetivos) entre seres vivos do mesmo sexo entre espécies de animais não-humanos.
      E se Ordem for uma coisa totalmente dissociada do ego e id, sendo superego puro, uma coisa platônica? Dá para significar isso de várias maneiras.
      Se, na tua mesa/cenário, tu realmente quer usar o argumento furado/de bancada evangélica de “ordem natural” para justificar um cenário de ethos homofóbico, vá em frente, é tua interpretação.

      • Rodrigo "Leninn" disse:

        De fato, nas sociedades antigas, o relacionamento homem x homem era tão ou mais valorizado do que o relacionamento homem x mulher. A visão estritamente hetero da coisa só veio com a idade média e o domínio da igreja católica da época (não estou falando nem julgando a atual).
        Gregos e Romanos por exemplo, e até Egípcios, base da cultura ocidental, valorizavam o relacionamento homem x homem, em especial a pederastia (homem mais velho x rapaz) como forma de auxiliar na evolução intelectual do indivíduo.

  21. Emanuel Messias disse:

    Somente uma coisa. Acredito em Deus e que Ele faz e ensina o bem. Porém, homens são falhos e, por vezes, não entendem o que Ele diz e agem totalmente ao contrário. Mas, para quem não acredita em Deus, julgue-o como o amor que habita em cada coração, seja pelo próximo ou pelas coisas que acredito que Ele criou.
    Acho que debates são legais, mas às vezes estragam um pouco a fraternidade e a diversão do RPG. E RPG é um jogo sobre união, diversão e, principalmente, opções (ou liberdade).

  22. Emanuel Messias disse:

    E estou “tentando” escrever um RPG que destrua as barreiras entre o cristianismo e o RPG. Como eu percebi que aqui o povo não tem medo de criticar, no perfeito sentido da palavra, quendo terminar eu posto aqui.

  23. Eduardo Dupim disse:

    Saudades Shido.

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